A vacina da covid-19 ainda não existe, mas a resistência a ela já é um problema bem real. Uma pesquisa do Datafolha com 2.065 brasileiros mostrou que 9% dizem que não irão se vacinar contra o novo coronavírus.
Os índices são ainda maiores nos Estados Unidos e no Reino Unido: 16% dos britânicos se recusariam a tomar a vacina se ela estivesse disponível hoje, segundo o instituto Ipsos Mori, e um em cada três americanos faria o mesmo, de acordo com o instituto Gallup.
Um medo das autoridades de saúde é que essa parcela da população cresça junto com o aumento dos ataques às vacinas contra a covid-19 e que isso comprometa os esforços para imunizar gente em número suficiente contra o novo coroanvírus para acabar com a pandemia.
Como a BBC News Brasil mostrou, já há uma campanha em curso contra as vacinas para covid-19 e ela está ganhando mais força conforme avançam as pesquisas.
Os posts publicados nos dois principais grupos antivacina do Facebook no Brasil estavam até há pouco tempo mais concentrados em falar da covid-19 em si e de alguns medicamentos que vêm sendo testados contra ela.
Mas os ataques às vacinas no grupo “Vacina: O maior crime da História!”, que tem 8 mil membros, e o “Vacinas: O lado obscuro das vacinas”, que tem 13,8 mil, estão ficando mais frequentes, diz João Henrique Rafael Junior, idealizador do União Pró-Vacina, projeto do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto que combate a propagação de informações falsas sobre o assunto.
Um dos posts mais recentes diz, por exemplo, que um novo tipo de vacina, que está em teste contra a covid-19, seria capaz de “modificar o DNA” de seres humanos.
A origem dessa “denúncia” seria a osteopata americana Carrie Madej, que afirmou em um vídeo divulgado na internet que esta tecnologia vai criar uma “nova espécie e, talvez, destrua a nossa”.
O problema é que isso não é verdade, como disseram especialistas às agências Reuters e Lupa e ao portal G1.
De fato, algumas vacinas em teste contra o novo coronavírus usam uma técnica inédita, conhecida como RNA mensageiro, para fazer com que parte do material genético do coronavírus, seja absorvido por nossas células para fazer com que elas produzam uma proteína característica desse micro-organismo, que será detectada pelo sistema imunológico.
A ideia é que o nosso corpo aprenda desta forma a nos proteger da covid-19. Mas essa tecnologia não altera o DNA das nossas células e, portanto, não cria seres humanos geneticamente modificados.
Essa forma de “denúncia” recorre a um expediente frequente nesse tipo de ataque: mistura algumas informações verdadeiras com outras falsas para nos fazer acreditar que corremos algum perigo e, neste caso, gerar desconfiança sobre as vacinas contra a covid-19.
Outros rumores que circulam dizem que células de fetos abortados são usadas na composição das vacinas; que elas são parte de uma conspiração do bilionário Bill Gates para implantar microchips em nós, ou que voluntários dos testes já morreram por terem se submetido às vacinas em fase experimental.
O temor de Junior, do União Pró-Vacina, é que, uma vez lançada a vacina, ela se torne o único alvo dos vários grupos que espalham mentiras na internet e isso leve à “maior campanha de desinformação da história”.
Isso pode não só comprometer a imunização contra o coronavírus, mas aumentar a desconfiança em relação às vacinas contra outras doenças.
“É como em um tsunami. O mar já começou a recuar. Em breve, vamos ser atingidos por uma onda gigantesca de desinformação sobre as vacinas. Se não estivermos preparados, é impensável o efeito que isso pode ter”, diz Junior.
A ‘infodemia’ é ‘ameaça à saúde pública’
A Organização Mundial da Saúde (OMS) já alertou que teorias da conspiração, rumores e mentiras divulgadas em torno da pandemia vêm se espalhando tão rapidamente quanto o próprio coronavírus.
Essa “infodemia” tem contribuído para aumentar o número de casos e mortes por covid-19 no mundo, segundo a organização.
Um estudo publicado no periódico American Journal of Tropical Medicine and Hygiene dá uma ideia do seu impacto.
Entre 31 de dezembro e 5 de abril, seus autores encontraram 2.311 publicações na internet com rumores e teorias da conspiração ou que promoviam a estigmatização de grupos sociais, em 87 países e em 25 idiomas.
Eles avaliaram 2.276 e concluíram que só 9% eram verdadeiras. A maioria eram falsas (82%), enganosas (8%) ou infundadas (1%).
Os cientistas estimam que um dos mitos mais difundidos (que ingerir álcool com uma alta concentração poderia desinfetar o corpo e matar o vírus), fez 5.876 pessoas serem hospitalizadas, matou 800 e deixou 60 cegas.
O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse em um comunicado em setembro do ano passado que a “desinformação sobre vacinas é uma grande ameaça à saúde global”.
Ele pediu que empresas de tecnologia, como Google, Facebook e Twitter, combatam esse tipo de conteúdo.
“As principais organizações digitais têm uma responsabilidade: garantir que seus usuários possam acessar informações sobre vacinas e saúde. Queremos que os atores digitais façam mais para tornar conhecido em todo o mundo que #VacinasFuncionam”, disse Ghebreyesus.
As vacinas são seguras?
Um estudo verificou a segurança das vacinas ao analisar as mudanças feitas nas bulas das 57 que foram aprovadas ao longo de 20 anos pela Food and Drug Administration (FDA), o órgão americano equivalente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Houve mudanças nas bulas relacionadas à segurança em 25 das vacinas, menos da metade do total. Ao todo, foram 58 alterações, entre janeiro de 1996 e dezembro de 2015.
A maioria (36%) foi para ampliar restrições de uso, como, por exemplo, indicar que grávidas e pessoas com problemas no sistema imune não devem usar vacinas feitas com vírus atenuados (“vivos”, mas enfraquecidos). Nestes casos, o mais indicado são vacinas com vírus inativados (“mortos”).
Alertas sobre alergias, frequentemente causadas pelo látex usado nas embalagens, levaram a 22% das mudanças, e 12 alterações foram para avisar sobre o risco de desmaios após a vacinação.
Só uma vacina foi tirada do mercado por motivos de segurança. A RotaShield, usada contra o rotavírus, que causa diarreia em crianças, parou de ser vendida porque podia levar a uma obstrução intestinal em bebês, potencialmente fatal.
O imunologista Carlos Zanetti, da Universidade Federal de Santa Catarina, diz que as vacinas que temos hoje são “bastante seguras”, embora causem alguns efeitos adversos.
“Eventualmente, algumas pessoas podem ter problemas, ficar doentes ou até morrer. Mas uma pessoa está sujeita a sofrer efeitos adversos com qualquer produto que injete no corpo, engula, passe na pele”, diz Zanetti.
Zanetti explica que a eficácia das vacinas (o percentual das pessoas que tomam e realmente ficam protegidas contra uma doença) varia de uma para outra e de acordo com as características biológicas de cada um de nós.
Mas o imunologista afirma que, no geral, elas são “altamente eficientes”. “Do ponto de vista biomédico, elas protegem muita gente”, diz.
As vacinas da covid-19 terão de passar por estudos clínicos para provar que também são seguras e eficazes antes de serem aplicadas. Também serão monitoradas uma vez que cheguem ao mercado.
Isso é importante porque, como Zanetti esclarece, os estudos podem não ser capazes de detectar um problema.
Ou algum efeito colateral que tenha sido insignificante nas estatísticas das pesquisas pode ganhar outra dimensão quando uma vacina for usada por milhões ou mesmo bilhões de pessoas.
“Vamos passar por um grande experimento humano. Mas não tem outro jeito. Eu tomaria a vacina, porque essa decisão sempre envolve um julgamento entre risco e benefício. No caso da covid, o benefício é muito maior que o risco. A vacina nunca vai ser tão mortal quanto a doença.”
O impacto das campanhas antivacina
O diretor-geral da OMS já disse que está preocupado com o alcance crescente das campanhas antivacina. Ghebreyesus alertou que elas podem reverter “décadas de progresso no combate a doenças que podem ser prevenidas”.
Um estudo feito pela FTI Consulting, uma empresa de inteligência de mercado presente em 11 países, dá uma ideia do potencial impacto da desinformação que circula em redes sociais sobre as vacinas contra covid-19.
A pesquisa analisou o aumento do volume de posts deste tipo sobre a vacina tríplice viral (para sarampo, caxumba e rubéola) no Twitter ao longo de 2012 e 2018. Neste período, houve uma queda de 3% na cobertura desta vacina na Inglaterra e no País de Gales.
Os cientistas da FTI analisaram a literatura sobre fatores comportamentais e demográficos e criaram um um modelo computacional que levou em consideração todos estes motivos e também o aumento da desinformação no Twitter.
O objetivo foi, por meio de um sistema de inteligência artificial, identificar o quanto da redução da cobertura vacinal foi causada exclusivamente pela desinformação.
O estudo concluiu que cada aumento de 100% no volume de desinformação sobre a tríplice viral no Twitter levou a uma queda de 0,2% na cobertura vacinal. Como houve no período analisado um aumento de 800% da desinformação na rede social, isso gerou uma redução de 1,6% na cobertura vacinal.
Ou seja, mais da metade da queda foi causada pela desinformação. “Outros estudos já haviam demonstrado uma associação entre o aumento da desinformação e a queda da cobertura vacinal. Nosso trabalho é o primeiro a provar que a desinformação causou uma queda”, diz Meloria Meschi, coautora do estudo.
David Eastwood, coautor da pesquisa, diz que, diante disso, é preciso levar a desinformação em conta antes mesmo das vacinas contra covid-19 serem lançadas.
“Quando a vacina estiver disponível, será importante que a imunização ocorra rapidamente. Mas, a menos que o risco da desinformação seja combatido, a adoção da vacina pode ser retardada”, afirma Eastwood.
Quanto mais tempo passa, maior é o desafio
O desafio é que, quanto mais se prolonga a pandemia, maior é a chance de uma pessoa entrar em contato com uma desinformação capaz de levar à recusa da vacina, aponta o físico Manlio De Domenico, do Instituto Bruno Kessler, na Itália.
O pesquisador criou o projeto Observatório de Infodemia Covid19, no qual monitora o volume de desinformação que circula no Twitter em 84 países.
Um programa de computador analisa 4,7 milhões de mensagens publicadas na rede social todos os dias para criar um índice do risco que uma pessoa corre de ser exposta à desinformação.
A partir deste trabalho, De Domenico identificou um padrão semelhante em diferentes partes do mundo.
Quando a pandemia começou na China, os usuários de muitos países passaram a compartilhar conteúdo de fontes duvidosas, teorias da conspiração e notícias falsas em geral. O risco de exposição à desinformação era alto.
Mas, depois que o coronavírus atingiu um determinado país, esse risco caiu, porque houve um aumento significativo do compartilhamento de informações de fontes confiáveis, como sites de governos, autoridades de saúde e de veículos de imprensa respeitados.
“Uma possível explicação para isso é que a proximidade da pandemia levou as pessoas a priorizarem as fontes confiáveis. Quando o risco de contágio estava longe, elas não se importavam tanto com isso”, diz o cientista.
O problema é que esse mesmo monitoramento mostra que o risco da desinformação vem aumentando conforme a pandemia se prolonga.
No Brasil, por exemplo, o índice variou entre 3% e 9% nos primeiros sete dias de março. Na primeira semana de agosto, ficou entre 18% e 36%.
De Domenico acredita que isso está relacionado com os efeitos sociais e econômicos da pandemia.
“Muita gente perdeu o emprego, amigos ou familiares. Depois de tanto tempo em isolamento, estamos com as emoções à flor da pele. As pessoas precisam encontrar uma forma de dar vazão a isso”, diz De Domenico.
Ele diz que a fase mais racional da pandemia está dando lugar a uma fase emocional, em que há uma tendência maior de que fontes confiáveis de informação sejam questionadas ou atacadas e da desinformação se espalhar.
Será neste contexto cada vez mais preocupante em que as primeiras vacinas serão lançadas.
“Podemos esperar um grande aumento de notícias falsas e teorias da conspiração quando isso acontecer. As vacinas já são uma questão emocional, e quanto mais emocionais as pessoas ficam, mais a desinformação tende a prosperar”, diz De Domenico.
“Será crucial nos prepararmos para esse momento.”
Rafael Barifouse – BBC
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