Em um racha sem precedentes na história da Organização dos Estados Americanos (OEA), o brasileiro Paulo Abrão foi destituído depois de ser reeleito por unanimidade como secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
A medida inédita, que veio à publico nesta semana, surge sob intensa polarização na organização — e às vésperas da divulgação de um relatório extraordinário sobre violência policial, atuação de milícias, ataques a minorias e retrocessos democráticos no Brasil.
O texto, segundo a BBC News Brasil apurou, identificaria “deterioração, retrocessos e graves violações de direitos humanos” no país.
A investigação abrange os dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro, cobrindo denúncias desde novembro de 2018, quando membros da comissão visitaram o país, até a data de publicação, prevista para fim de setembro de 2020.
Procurados pela reportagem, nem a OEA, nem o Itamaraty quiseram comentar a suposta relação entre o afastamento e as críticas da comissão ao governo brasileiro.
Críticas
Dados públicos da comissão mostram que, desde a posse de Bolsonaro, o Brasil foi alvo de mais de 45 críticas públicas, petições e recomendações, além do relatório especial em fase de finalização.
Apesar de duros embates com gestões anteriores (Dilma Rousseff chegou a anunciar a saída da comissão após críticas à usina de Belo Monte), nunca na história da CIDH o Brasil foi objeto de tantos chamados.
Apesar de ligada à estrutura da OEA, a comissão tem prerrogativas de total independência e autonomia, segundo seu estatuto.
Para autoridades com acesso a detalhes do processo, a destituição de Paulo Abrão seria fruto de pressão vinda do Brasil e de outros Estados descontentes com análises negativas sobre violações a direitos humanos.
Já segundo o secretário-geral da OEA e autor do veto ao brasileiro, o uruguaio Luis Almagro, o gesto seria resultado da “existência de dezenas de denúncias de caráter funcional” contra a sua gestão.
Expansão
O brasileiro esteve por trás da criação de um plano estratégico responsável pela expansão da atuação da comissão no continente até 2021 e por uma ampla reestruturação administrativa – o que despertou crises internas no órgão e queixas de supostos abusos trabalhistas contra ex-funcionários, o que Abrão e o comissariado negam.
Em meio à guerra de versões, a BBC News Brasil ouviu uma série de autoridades próximas ao caso, incluindo membros do gabinete de Almagro, comissários e membros do alto escalão da comissão, diplomatas e políticos latino-americanos e ex-funcionários da CIDH, que pela primeira vez falaram publicamente sobre as denúncias.
Os bastidores do caso expõem um complexo emaranhado de conflitos de interesses em diferentes níveis – desde embates políticos entre embaixadores, presidentes e comissários até desavenças no cotidiano do amplo escritório da comissão em Washington, nos EUA.
O que aconteceu
No cargo desde agosto de 2016, Abrão é descrito como um dos principais especialistas em direitos humanos no continente. PHD em direito e ex-professor em universidades no Brasil e na Espanha, ele foi secretário Nacional de Justiça, chefe do Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos do Mercosul, presidente a Comissão da Anistia, do Ministério da Justiça, e presidente do Comitê Nacional para os Refugiados e do Comitê Nacional contra o Tráfico de Pessoas no Brasil, entre outros cargos.
Em janeiro de 2020, ele foi reconduzido com apoio de todos os sete comissários da CIDH para mais quatro anos à frente do órgão, criado em 1959 anos para monitorar e combater abusos contra cidadãos nas Américas.
Mas no último dia 15, data em que o contrato de Abrão deveria ser renovado, o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, surpreendeu os membros da comissão ao anunciar que a gestão do brasileiro não seria prorrogada.
Almagro, reeleito recentemente ao posto com forte apoio do Brasil, da Colômbia e dos Estados Unidos, justificou a decisão de última hora como fruto da “seriedade e gravidade” de reclamações de funcionários sobre a gestão de Abrão.
Entrevistados pela BBC News Brasil em condição de anonimato, ex-empregados dizem ter sido vítimas e testemunhado abusos trabalhistas como o suposto privilégio de colegas em processos seletivos, perseguição de funcionários anteriores à gestão do brasileiro e retaliação contra funcionários que discordassem das decisões de Abrão – o que ele e os comissários negam veementemente.
As queixas são questionadas por colegas e observadores externos que apontam, por exemplo, que todos os concursos da comissão passam por três colegiados e pela revisão e aprovação final do próprio Almagro.
Recusa e confusão
Em outro aspecto inédito do caso, a polêmica decisão do chefe da OEA foi recusada pela comissão.
“Para a Comissão, Paulo Abrão segue como Secretário-Executivo”, disse à BBC News Brasil a advogada chilena Antonia Urrejola, vice-presidente da CIDH. Para efeitos formais, o grupo nomeou a colombiana Claudia Pulido, secretária-executiva adjunta da comissão, como substituta interina do brasileiro.
Almagro reagiu publicamente à resistência, afirmando em nota que a comissão interrompeu o diálogo com a OEA “unilateralmente”.
“É totalmente antiético e repreensível tentar gerar confusão a respeito do que constitui a responsabilidade funcional individual de um ou mais funcionários e o que constitui a autonomia da CIDH”, afirmou o secretário-geral, subindo o tom na disputa interna.
Reação internacional
A postura inédita de Almagro foi o estopim para uma onda de críticas vindo de organismos multilaterais como a ONU e a Unesco, países como México e Argentina, organizações globais de direitos humanos, ONGs e lideres políticos de diferentes nacionalidades.
Eles classificam o veto como um “golpe” e uma interferência na autonomia da comissão. Para estes críticos, a derrubada do brasileiro supostamente fere o estatuto da Comissão e poderia colocar em xeque a fiscalização de torturas, mortes políticas, ataques racistas e abusos contra minorias em mais de 30 países.
O autor de uma das denúncias, no entanto, descreve um “ambiente de medo”, “assédios”, “perseguições” e “violações”, na Comissão.
“Nenhum órgão de direitos humanos deveria ser caraterizado por um perfil sistemático de abusos. Paulo está sendo colocado como vítima, quando na verdade foi ele quem violou os direitos das pessoas”, disse.
Questionado, o empregado disse não ter provas materiais sobre as acusações.
À reportagem, a vice-presidente da CIDH endossou suspeitas de motivação política no processo.
“No justo momento em que a comissão ganha relevência, publica uma série de informes sobre países cumprindo um papel bastante crítico sobre governos de diferentes vieses ideológico que ficaram bastante descontentes com as críticas, acontece essa não-renovação de última hora. Obviamente entendemos que há intenção politica por trás, seja de Estados, seja pelo secretário-geral, basta ver o contexto”, disse Urrejola.
Para a comissária, ex-relatora sobre Brasil na Comissão, “preocupa que a decisão desrespeite o principio de inocência que merece qualquer pessoa, porque não sabemos nem sequer quem são os acusados ou quais são as investigações, ou mesmo se há investigações formais que envolvam Paulo Abrão”.
“Com isso, não quero dizer que não se investiguem as queixas ou denúncias”, ressaltou a chilena. “É essencial que as investiguem com profundidade. E este é o ponto: a falta de transparência denota uma utilização política dos denunciantes, o que parece injusto e contraditório por parte do secretário-geral”, diz.
Procurado pela reportagem, o gabinete de Almagro não comentou as críticas sobre interesse político, mas disse que “o processo está em poder do inspetor-geral responsável pela investigação”.
“O trabalho do inspetor-geral, por sua própria natureza, é tecnicamente independente e não sabemos que medidas ele pode já ter tomado no contexto da investigação”, continuou o gabinete.
Abrão, por sua vez, limitou-se a dizer que no momento não vai falar com a imprensa.
Alertas sobre o Brasil
Sob a batuta do brasileiro, a Comissão foi responsável por duras críticas a chacinas, perseguições, violações de direitos políticos e falhas na proteção de grupos e pessoas em todo o continente.
Entre 2019 e 2020, segundo a BBC News Brasil apurou, o Brasil foi alvo de 45 críticas diretas da Comissão por meio de notas à imprensa e por canais oficiais em redes sociais. Os temas vão desde assassinatos de mulheres, indígenas, trabalhadores rurais e presos até o fechamento de unidades da defensoria pública e muanças no Ibama.
No período, o Brasil foi alvo de pelo menos cinco medidas cautelares. Estas ferramentas funcionam como uma espécie de reconhecimento internacional de falhas de um país em proteger determinados grupos ou pessoas e incluem recomendações de medidas necessárias para reverter injustiças.
Uma das medidas que mais teriam irritado o governo brasileiro foi editada em 2018, cobrando a proteção de Monica Benicio, viúva da vereadora Marielle Franco, cujo assassinato envolveu policiais, milicianos e políticos, segundo o Ministério Público e a Polícia.
Já o relatório extraordinário prestes a ser publicado sobre o Brasil deve tocar em temas consideráveis sensíveis pelo palácio do Planalto, como vítimas da ditadura militar, ataques à imprensa, atuação de milícias, impunidade policial e impactos sobre comunidades do uso da base de Alcântara, fruto de negociações entre Brasil e EUA.
Outros temas abordados, segundo documentos preliminares e pessoas e entidades entrevistadas pela Comissão, seriam “gravíssimas violações” e retrocessos em relação a quilombolas, indígenas, população carcerária, trabalhadores rurais, mulheres, liberdade de expressão e funcionamento das instituições democráticas no país.
O texto é resultado de visitas a Brasília, Minas Gerais, Pará, São Paulo, Maranhão, Roraima, Bahia, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro em novembro de 2018. Trata-se da segunda visita in loco da comissão ao Brasil — a primeira aconteceu entre novembro e dezembro de 1995.
Weintraub
Para uma autoridade ouvida pela reportagem, o suposto apoio do Brasil à queda de Abrão também seria fruto de negociações para oferta de um posto importante na OEA para Arthur Weintraub, ex-assessor especial da Presidência e irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, indicado para um cargo de diretor no Banco Mundial.
“Almagro derrubou Abrão como moeda de troca pelo apoio do Brasil e de outros países a sua reeleição, em março, e porque o Brasil prefere ter um bolsonarista ocupando um cargo importante a queimar um cartucho internacional com um defensor de direitos humanos”, avalia uma autoridade próxima ao caso em Washington, em condição de anonimato.
Fontes no governo classificaram as acusações como “fantasia”.
Em março, o Itamaraty divulgou nota registrando “com satisfação” a reeleição de Almagro.
“A candidatura de Almagro foi apoiada pelo Brasil desde o início do governo do presidente Jair Bolsonaro”, dizia o texto.
Segundo fontes diplomáticas, a Colômbia, recém-condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violar direitos políticos de um ex-prefeito de Bogotá, e a Bolívia, onde a Comissão determinou a criação de um grupo de investigação internacional para apurar massacres de indígenas, seriam, junto ao Brasil e aos EUA, os principais lobistas da queda de Abrão.
Mas, enquanto alguns governos de vizinhos latino-americanos defendem o brasileiro, o Itamaraty foi na contramão e informou à BBC News Brasil que “a decisão (sobre o futuro de Abrão) é prerrogativa estrita do Secretário-Geral da OEA”.
Em seu comentário, o ministério de Relações Exteriores cita um artigo do estatuto da Comissão que afirma que “o secretário executivo (Abrão) será designado pelo secretário-geral da Organização (Almagro) em consulta com a Comissão”.
Mas fontes no alto escalão da OEA ouvidas pela reportagem dizem que a leitura do governo brasileiro é equivocada e apontam outros dois artigos, que diferenciam seleções de renovações de mandato e apontam que cabe “à maioria absoluta dos membros da Comissão” decidir sobre impasses relacionados à interpretação do estatuto – o que não teria ocorrido.
Itamaraty
O assunto foi objeto de um comunicado em tom “duro e pouco usual”, na opinião de diplomatas ouvidos pela reportagem, assinado pela alta comissária de direitos humanos da ONU, Michelle Bachelet.
“O impasse atual sobre a renomeação de Abrão é uma situação negativa e que ameaça minar a independência e eficiência comprovada da Comissão”, disse a chilena, que ressalta que “que o episódio também afeta a reputação da OEA”.
Em abril do ano passado, o órgão foi alvo de uma carta assinada por Brasil, Argentina, Chile, Colômbia e Paraguai que sugeria uma reforma para limitar sua ação no continente.
“Estados gozam de uma razoável margem de autonomia para resolver sobre as formas mais adequadas de assegurar direitos e garantias, como forma de dar vigor a seus próprios processos democráticos”, dizia o texto. “(Esta) margem deve ser respeitada pelos órgãos do sistema americano”.
Após a eleição de Alberto Fernández, a Argentina abandonaria o grupo que assina a carta. Todos os países signatários eram alvo de críticas da Comissão.
Na nota enviada à reportagem, o Itamaraty fez menção indireta ao tema.
“Junto com outros países, o Brasil tem buscado, ademais, atuar para o aperfeiçoamento constante da Comissão”, diz o órgão.
Ainda segundo a nota enviada pelo Itamaraty, “o governo brasileiro tem mantido diálogo institucional com a Secretaria Executiva, respeitando a autonomia e independência da CIDH e suas competências estatutárias convencionais”.
Acusações trabalhistas
A BBC News Brasil ouviu diversos ex-funcionários da Comissão Interamericana de Direitos Humanos que fazem parte do grupo que teria denunciado a gestão de Paulo Abrão à direção da OEA.
As queixas aparecem em um relatório confidencial escrito pela ombudsperson da OEA, Neida Pérez – cujo papel oficial é mediar confitos internos. Segundo a BBC News Brasil apurou, o texto não traz denúncias individualizadas, não diz se elas se converteram em investigações, nem especifica quem seriam os alvos das queixas.
“Ele tirou minhas funções, tirou os funcionários que eu coordenava, me colocou em um posto menor e não me deixava participar de reuniões importantes”, disse um dos ex-funcionários à reportagem.
“Comecei a ficar louco. Tinha ataques de pânico antes de ir ao escritório. Estive nas mãos de um psiquiatra, que me recomenou internacão, mas eu não quis”.
Segundo esta pessoa, Abrão tentaria coagir funcionários a favorecer sua gestão em comparações com anteriores em informes oficiais. Ele também teria supostamente privilegiado candidatos que não estariam aptos a funções em detrimento de pessoas com mais tempo de casa.
A equipe de Abrão nega as acusações.
A reportagem também questionou o profissional sobre indícios ou provas das acusações. “Não tenho (provas) materiais para provar nada. O que posso oferecer a vocês é meu testemunho, e o testemunho de muitos outros e muitos outros.”
Segundo um entrevistado, todas as denúncias encaminhadas por colegas à ombudsperson se referem a “abusos profissionais, contratações irregulares e concursos viciados”.
“(Ele quer que) façam tudo o que ele quer, mesmo que haja mentiras, manipulação e corrupção”, disse o funcionário, classificando o brasileiro como um “narcisista, apaixonado por si mesmo, e alguém que quer que as pessoas a seu redor o obedeçam sem discussão.”
Outro funcionário, que já trabalhava na comissão antes da chegada do brasileiro, afirma ter sido preterido por colegas de Abrão.
“Havia humilhação pública, no sentido de rebaixar uma pessoa perante seus colegas e companheiros por meio da retirada de funções ou através de tarefas similares às realizadas por outros funcionários com cargos mais baixos”, disse.
“Eu falei que não concordava e fui totalmente ignorado.”
Questionado sobre a onda de apoio ao brasileiro, que inclui mais de 200 organizações, países e pessoas físicas, um denunciante classificou Abrão como “esperto”.
“Paulo é inteligente, astuto, sabe agradar. Ele se move bem com os comissários e comissárias e dá visibilidade a eles. Ele não teve embates práticos, discussões, ele age discretamente. E as outras pessoas têm medo do que ele vai fazer com a carreira delas. A resposta externa de agora demonstra a força política que ele tem.”
A equipe de Paulo Abrão afirma que não foi notificada oficialmente sobre a abertura oficial de nenhuma investigação contra ele ou membros de sua equipe. Também diz, sem dar detalhes, que a reforma administrativa do órgão gerou resistência e ressentimento por parte de alguns funcionários.
O órgão também nega que não tenha encaminhado reclamações formalmente, como afirmou Almagro ao classificar “a falta de tramitação como um duro golpe na credibilidade da Comissão”.
“A Comissão renovou por unanimidade o mandato de Paulo em janeiro desse ano, em uma reunião sem a presença dele”, diz um comissário. “O secretário-geral teve de janeiro até agora para nos consultar e fazer observações sobre a postura de Paulo. Nada aconteceu. Tivemos várias reuniões com Almagro sobre diversos temas e ele nunca, de maneira formal ou informal, mostrou objeções sobre a renovação de Paulo.”
Também não há informações oficiais sobre o status das queixas, nem sobre quantas delas se refeririam a suspostos atos praticados pelo brasileiro e quantas se aplicariam a eventuais omissões de Abrão em relação a condutas de terceiros.
Por Ricardo Senra – BBC
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