Somada à deteriorização do mercado de trabalho e à disparada da inflação, a redução dessas políticas trouxe de volta o fantasma da desnutrição
por Maria Luísa Pimenta e Leonardo Campos da Agência Nossa
edição de Sabrina Lorenzi
Ao longo dos últimos anos, programas criados com o objetivo de estudar e elaborar políticas de combate à fome sofreram cortes que têm contribuído para a agravar o problema que o Brasil voltou a enfrentar. Somada à deteriorização do mercado de trabalho e à disparada da inflação, a redução dessas políticas trouxe de volta o fantasma da desnutrição.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), vigente desde 1955, que possui o objetivo de oferecer recursos para creches e escolas, garantindo refeição para os alunos, considerado referência mundial, foi um a sofrer desfalques. Uma parcela de 30% da renda desse programa era destinada à aquisição de alimentos de pequenos produtores rurais.
A mudança no Fundeb, em março de 2020, trouxe cortes orçamentários de 75% em recursos de alimentação. Com o corte, muitos agricultores perderam as encomendas e passaram à condição de fome. Com as aulas retornando após 18 meses de pandemia, alunos e funcionários também sofrem com o corte do PNAE.
Além do PNAE, outros programas vêm sendo afetados. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi totalmente extinto em setembro de 2019, primeiro ano do mandato do presidente Jair Bolsonaro. O órgão criado em 1993 no governo Itamar Franco e reorganizado em 2003 no governo Lula era responsável por organizar as diretrizes a serem tomadas para políticas alimentares.
De acordo com o IBGE, entre julho de 2017 e julho de 2018, praticamente um ano antes da revogação do Consea, o número de brasileiros passando fome já era de 10,3 milhões de pessoas e com tendência de alta. Vale lembrar que a população rural é a que mais sofre com a fome. Em 2018, 7,1% das pessoas que moram em zonas rurais sofriam de insegurança alimentar grave. Esse número hoje é de 12%.
Atualmente, o Brasil possui cerca de 19 milhões de pessoas que enfrentam fome, de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN).
O descaso com políticas voltadas à alimentação e os impasses relacionados a programas de apoio à população são outras questões que dificultam o acesso à alimentos. O economista João Paulo Lima, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e colaborador voluntário do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (CEDE) lembra que esses programas são a fonte principal de renda para muitos brasileiros e, com tantos problemas, principalmente com o fim do Bolsa Família, as dificuldades refletem na hora de se alimentar:
“Em um momento atípico como a pandemia em que grande parte da população fica impossibilitada de trabalhar, os programas de auxílio são a principal fonte de renda de diversas famílias. O governo se equivocou ao limitar o acesso e reduzir o benefício sem que houvesse uma melhora visível na situação econômica do país. Além disso, a inflação de alimentos tem um peso muito maior para as famílias mais pobres, que dependem do auxílio, visto que o gasto com comida é proporcionalmente maior em relação à renda delas”.
O Bolsa Família era um dos principais programas de repasse de renda para a população, com reconhecimento mundial. Ele foi criado em 2001, no governo Lula, como uma ampliação dos programas Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás e Cadastramento Único do Governo Federal (CadÚnico), iniciados no governo de Fernando Henrique Cardoso. O Bolsa Família foi considerado pela ONU um dos fatores que fez o Brasil sair do Mapa da Fome em 2014 e já tirou 14 milhões de brasileiros da condição de miséria.
“Um aspecto essencial de políticas de transferência de renda é a regularidade dos pagamentos, de modo que seja previsível, permitindo que os beneficiários se planejem. O governo gera uma incerteza desnecessária ao substituir o Bolsa Família, um programa muito bem desenhado em funcionamento há 18 anos”, explica João Paulo Lima.
Desemprego elevado
A pandemia da Covid-19 foi um agravante do enfraquecimento do mercado de trabalho, mas a realidade é que o desemprego já vinha crescendo há anos e neste ano houve ainda o peso da inflação, que corrói mais severamente a renda dos mais pobres.
“Nos últimos anos temos observado uma deterioração do mercado de trabalho, além do crescimento do desemprego, houve também um aumento do setor informal, caracterizado por empregos de menor complexidade e salários mais baixos”, explica o economista João Paulo Lima.
O aumento dos preços nas prateleiras dos supermercados, impulsionado pela inflação, dificulta o acesso aos alimentos. O economista Wallace de Anchieta Marques, pós graduando em Finanças pela UFF, destaca que a inflação brasileira está muito elevada se comparada inclusive a outras economias:
“O Brasil está mal. Quando a gente fala comparativamente com outras economias, a inflação, o nível de atividade, não correspondem ao potencial do país”. Hoje, o Brasil é o terceiro país com a maior inflação acumulada em 12 meses, perdendo apenas para Argentina e Turquia, afirmou.
Isso reflete no bolso do consumidor, como o da professora do Estado do Rio de Janeiro Sandra Elisa Figueira, de 58 anos. Ela nota um grande aumento no valor dos produtos alimentícios nas idas ao supermercado. “Eu percebi que produtos básicos como arroz, feijão e carne em relação ao início do ano estão quase 50% mais caros”, conta.
A fome no Brasil não vem de hoje
Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU. Mas, a partir do mesmo ano, a situação começou a se inverter. De 2013 a 2018, a população que passava fome aumentou 8%, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD) e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). A segurança alimentar diminuiu para 63,3%. Entre 2018 e 2020 foi pior: houve um aumento de 27,6% no número de brasileiros em situação de insegurança alimentar.
Com a pandemia da Covid-19, se intensificou até chegar ao patamar de hoje. É possível perceber que a crescente de brasileiros passando fome, porém, não é fruto apenas da pandemia.
Um indicativo econômico que reflete diretamente na crise vivenciada atualmente é a inflação, que se estabilizou nas últimas duas décadas. Porém, especialmente no ano de 2020, o indicador disparou juntamente com a desvalorização do real. Os produtos da cesta básica subiram consideravelmente de preço e o salário mínimo não acompanhou essa alta. A professora Sandra conta que hoje precisa usar uma parte maior do seu salário para alimentação e que, por conta da alta, precisou deixar de consumir outros produtos: “O custo alimentação aumentou e para compensar estou diminuindo os supérfluos”.
Inflação mais perversa com pobres
O economista Wallace explica que, hoje, a inflação está sendo uma variável preocupante: ” A gente está bem preocupado porque está persistindo muito mais do que o esperado efetivamente entre os bens industriais, principalmente, e isso se deve muito à lentidão da normalização das condições de oferta”.
“Por que a inflação é muito perigosa? Um dos aspectos é que ela corrói o poder de compra. O rico consegue investir em mecanismos de investimentos no mercado financeiro que protegem o seu dinheiro da corrosão do poder de compra. […] E o pobre não, o pobre muitas vezes nem sabe o que é isso. Aquela pessoa que vende pipoquinha na rua, que vende salgado, a tia da cantina, a tia que faz a limpeza diária, a diarista… então, enfim, são esses aspectos que estão nessa questão”, complementa o economista Wallace de Anchieta Marques.
O aumento do preço dos produtos no supermercado tem relação, principalmente, com a valorização das commodities e a inflação
“Arroz, carne, feijão, óleo, frango…” Esses são alguns dos alimentos que Sandra mais viu alterar os preços nos últimos meses, atingindo valores muito mais altos que o normal. “Eu percebi que hoje esses produtos básicos em relação ao início do ano estão quase 50% mais caros”, contabiliza a professora. A valorização das commodities é um dos motivos para esse problema. “A gente teve algumas exportações favorecidas pelo crescimento da economia mundial. Os preços das commodities tornaram-se mais interessantes e o Brasil é um grande exportador de commodities, especialmente soja. E nós tivemos esse favorecimento, então isso trouxe mais dinheiro para a casa”, explica Wallace. O aumento de exportação de commodities, porém, busca aumentar o lucro do agronegócio, de forma que o mercado interno se prejudique.
De acordo com o IBGE, houve uma alta de 0,6% no ramo de alimentos e bebidas em relação ao mês anterior. Os maiores aumentos foram da batata-inglesa (19,91%), café moído (7,51%) e frango em pedaços (4,47%). “Precisei trocar marcas de produtos em geral por outras de menor custo, como, por exemplo, produtos de limpeza, arroz e óleo”, conta Sandra que, assim como todos os brasileiros, está precisando se virar para evitar que a maior parte do salário vá para o carrinho de supermercado.
* Os autores desta reportagem são estudantes de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) sob coordenação da jornalista Larissa Morais.
Fonte: Agência Nossa
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