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Brasil ainda não tem uma política nacional com foco em órfãos da pandemia

Foto: Divulgação

Milhares de crianças perderam os pais para a covid-19. No entanto, país ainda mal começou a mapear e estabelecer políticas para ajudar esses órfãos. Segundo relata a agência alemã Deutsche Welle, apenas algumas iniciativas estaduais de amparo foram criadas.

por Malu Delgado

Sem saber com precisão quantos são, onde estão e do que mais necessitam, crianças e adolescentes em situação de orfandade por causa da covid-19 – em especial os que vivem em situação de vulnerabilidade econômica e social – não contam com uma política pública nacional e coordenada que possa minimizar os efeitos dessas perdas, que impactarão o futuro de uma geração inteira.

Em números absolutos, estima-se que o Brasil seja o segundo país com mais órfãos no mundo, atrás apenas do México.

Somente alguns estados e municípios já aprovaram leis e políticas de assistência material e amparo psicossocial específicos a essas crianças e adolescentes em luto, como é o caso, por exemplo, dos 9 estados do Nordeste, São Paulo e a cidade de Campinas. No entanto, poucas ações já estão funcionando na prática, incluindo as de transferência de renda, e elas são bastante limitadas, segundo relata a agência de notícias alemã Deutsche Welle (DW).

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos informou à DW Brasil, por e-mail, que a empresa Finatec venceu edital e iniciou, em 13 de outubro, mapeamento sobre o impacto da covid-19 em crianças e adolescentes, incluindo a questão da orfandade.

Esse estudo será concluído em março de 2022. O objetivo, segundo a pasta, é identificar “os principais efeitos psicossociais gerados pelo contexto relacionado à pandemia”. O trabalho será feito em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Não foram informados valores da contratação.

Corrida contra o tempo

Ainda que reconheçam que é preciso dimensionar o fenômeno da orfandade pela covid-19 e tirar da invisibilidade essas crianças e adolescentes, especialistas em infância e juventude têm enorme preocupação com o tempo. É sobretudo a primeira infância (0 a 6 anos) que vai determinar o futuro da criança e já se passaram 20 meses desde o início da pandemia no Brasil. Muitas dessas crianças perderam os pais ou responsáveis no ano passado.

A desestruturação completa da família, sob os aspectos material e emocional, pode provocar danos irreversíveis que implicam evasão escolar, trabalho infantil, abuso sexual e até mesmo a entrada dessas crianças e adolescentes para a rede do crime organizado. Outra preocupação é com políticas apenas pontuais e temporárias.

A CPI da Covid, no Senado, cujo relatório final foi aprovado em outubro, recomendou a pensão de um salario mínimo a esses órfãos até que completem 18 anos. No entanto, é preciso aprovar uma lei.

Com o país afundado no dilema fiscal sobre furar ou não o teto de gastos para criar o Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família, ainda não há sinais concretos de que essa proposta possa ser aprovada com prioridade neste ano. Há mais de um projeto sobre o tema em tramitação no Congresso.

Movimento precisa ser combinado e urgente

“Temos que fazer um movimento combinado entre dimensionar e encontrar formas imediatas de garantir apoio a essas crianças e adolescentes”, afirmou à DW Brasil Benedito Santos, consultor de proteção à criança do Unicef no Brasil. Segundo ele, o receio do Unicef é que os governos gastem muito tempo no dimensionamento o fenômeno e demorem demais a agir.

Essas políticas públicas precisam fazer acompanhamento contínuo dos órfãos até a maioridade, pela rede de proteção social já existente no Brasil – o Sistema Único da Assistência Social (Suas) – defende o consultor do Unicef.

“Se houver só ajudas momentâneas agora, isso tem impacto no desenvolvimento futuro da criança. Além de ajuda financeira pontual e eventual, essa família precisa estar apoiada em torno do próprio luto, da saúde mental, ter um acompanhamento da rede de proteção social”, afirma Santos.

Ele alerta, ainda, que não se pode utilizar esse debate para flexibilizar, sem critérios, as regras de adoção no Brasil. “Há uma série de pré-requisitos para adoção e estamos com receio de que isso seja flexibilizado. Deve haver um cuidado especial para isso não virar também um esquema de flexibilização de normas e garantias que a criança tem no processo de adoção.”

Quantos são: números oscilam de 12 mil a 282 mil

Há poucos dados quantitativos concretos sobre a orfandade na pandemia. O estudo mais robusto foi feito por um grupo de pesquisadores, coordenado pelo Imperial College London. Publicado em julho pela revista científica The Lancet, o estudo cria um modelo estatístico de orfandade para 21 países do mundo, com ferramenta de atualização.

A última atualização para o Brasil foi feita em 12 de outubro. Se consideradas as perdas primárias e secundárias (de um dos pais, de ambos ou do responsável legal, como avó ou avô), o país já tem 282;800 menores de 18 anos órfãos pela covid. Quando se leva em conta apenas a morte de um dos pais ou de ambos, essa estatística é de 168.500. Os próprios pesquisadores alertaram que a subnotificação é provável.

Outra estatística foi divulgada pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). A partir do cruzamento de certidões de óbitos com registros de nascimento, os cartórios apontaram que há no Brasil 12.211 crianças órfãos na faixa etária de 0 a 6 anos.

Os cartórios só fizeram o cruzamento de crianças de 0 a 6 anos porque, desde 2015, há uma legislação no país que concede a cada criança um número de CPF que fica registrado, de imediato, na certidão de nascimento. Como a base de dados é integrada com a Receita Federal, foi possível fazer o cruzamento online.

A pressão do MP: casos de São Luís (MA) e Campinas (SP)

A região Nordeste é a única no país que criou política de transferência de renda e assistência direcionada aos órfãos da covid-19, via Consórcio Nordeste. O programa, Nordeste Acolhe, foi inspirado no Maranhão, o primeiro estado do país a criar transferência de renda aos órfãos bilaterais (que perderam o pai e a mãe) até que completem a maioridade. As famílias beneficiadas precisam ter renda mensal inferior a três salários mínimos.

Titular da 1ª Promotoria de Justiça de Infância e Juventude de São Luís, Márcio Thadeu Silva Marques identificou, nos últimos meses, que situações de ameaça ou violação de direitos de crianças e adolescentes estavam relacionadas à orfandade.

“O Ministério Público tem a possibilidade de acompanhar políticas públicas. Foi o que fiz. Queria saber do município e do Estado do Maranhão se os órfãos da covid já tinham entrado no radar. Abri esse procedimento não no sentido investigativo ou punitivo, mas para tentar induzir políticas públicas. Percebi, logo, que elas não existiam”, disse o promotor de justiça à DW Brasil.

O promotor pediu auxílio à Corregedoria Geral de Justiça do Maranhão, que determinou aos cartórios que, ao registrarem os óbitos por covid, informassem também se o falecido deixou filhos menores de idade, constando na certidão seus respectivos nomes e idades, bem como a informação se há responsável (pai ou mãe) sobrevivente.

Se configurada a orfandade bilateral, o cartório aciona imediatamente os órgãos de assistência social. Além disso, hospitais do Maranhão também foram orientados a preencher ficha detalhada de pacientes de covid-19 no ato da internação, registrando se o paciente tem filhos menores de 18 anos.

O promotor Márcio Thadeu ressalta a importância da “desinvibilização dos órfãos” para criar políticas públicas.

“Preservar a convivência da criança com a família extensa é prioridade. A família extensa, sobrevivente, não é só a de sangue, mas é a quem tem laços de convivência e afeto”, explica. Garantir segurança de renda para essas crianças é outra prioridade, além da proteção psicossocial. “Se a orfandade atinge extratos populacionais mais vulneráveis social e economicamente, isso pode definir se essa criança vai para a rua ou não”, assegura o promotor.

Em Campinas, a promotora de Justiça da Infância e Juventude Andréa Santos Souza também conseguiu pressionar o poder público e tem, hoje, dados concretos de orfandade pela covid-19 no município. “Pedi para os cartórios me mandassem as certidões de óbitos dos que morreram por covid, se possível só os que deixaram menores. Recebi mais de 2 mil certidões de óbitos”, conta.

Depois de filtrar toda a documentação de março de 2020 a julho de 2021, a promotora encontrou 455 órfãos só no município. A partir da articulação da promotoria, Campinas tem agora lei municipal que assegura um benefício à família que acolher o órfão. Mas serão apenas 3 parcelas de R$ 500. A transferência de renda até a maioridade, diz a promotora, é o recomendável pela ONU. “É meu horizonte, mas não posso forçar o poder público a fazer isso agora. Temos que ir devagar.”

Transferência de renda para órfãos

O governo do Maranhão começaria a pagar os benefícios (R$ 500) a partir do início de novembro às crianças e adolescentes que perderam pai e mãe. De acordo com Márcio Honaiser, secretário de Desenvolvimento Social do Estado, o poder público está ciente de que a orfandade é uma situação de dificuldade para as crianças que perderam um ou os ambos os pais, mas o “cobertor é curto” e, por razões orçamentárias, o governo deu prioridade ao auxílio se houver orfandade bilateral.

“A preocupação inicial é com quem perdeu os dois, não tem ninguém, ficou sem vínculo”, disse o secretário. O governo estadual estima que há cerca de 800 crianças e adolescentes nesta situação e admite que, em 2022, a política poderá ser redesenhada.

O Consórcio Nordeste seguiu as mesmas orientações da lei maranhense e vai conceder o auxílio de R$ 500 a órfãos bilaterais, até a maioridade completa.

Íris Oliveira, coordenadora da Câmara Temática de Assistência Social do Consórcio do Nordeste, reconhece que o auxílio financeiro apenas para órfãos que perderam pai e mãe é limitado. Porém, ela justifica que as famílias em situação de vulnerabilidade “precisam ter direito a outros programas de transferência de renda para além do benefício concedido dos órfãos”. É por isso, complementa, que o Consórcio Nordeste luta pela ampliação do Bolsa Família.

Em São Paulo, o governo estadual criou uma bolsa mensal, de R$ 300, por seis meses, para famílias de baixa renda que perderam algum ente vítima fatal da covid-19. O programa, São Paulo Acolhe, não é específico para os órfãos, mas a secretaria de Desenvolvimento Social do Estado, Célia Parnes, explica que, entre os 27.500 beneficiários, 5.851 estão na faixa etária entre 0 a 18 anos, e 5.500 deles estão registrados nas categorias de filho, neto ou bisneto.

“Esse programa foi criado, como vários outros na pandemia, de forma a responder rapidamente a situações novas. O governador vem estendendo programas criados na pandemia de forma sistemática. Não me surpreenderia se esse também for prorrogado”, diz.

Célia Parnes elogiou o trabalho da CPI da Covid, ao dar visibilidade a esse problema e propor uma pensão nacional. “Acho que isso tem que ser uma ação do governo federal. É uma resposta macro, que deve partir do governo federal, já que temos um problema nacional. O SUAS é um sistema tripartite. As ações emergenciais feitas por governadores são respostas rápidas. Não acho que deva haver sobreposição de ações. Deve haver uma ação tripartite de cofinanciamento, interligada, isso seria o correto.”

Mapeamento e assistência do governo federal

O governo federal não considera a possibilidade de pagamento de pensão aos órfãos da covid-19.

Além do estudo de diagnóstico, que será conduzido sob a orientação da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a pasta alega que implementou ações específicas para crianças e adolescentes afetados pela pandemia.

Não foi atendido o pedido de entrevista da DW Brasil para que as ações da pasta pudessem ser detalhadas. O ministério citou um trabalho “em busca de caminhos para aprimorar os procedimentos de adoção, buscando amparo aos órfãos da Covid-19, propondo a adequação e o aperfeiçoamento da legislação, com segurança jurídica e sempre centrada no melhor interesse da criança e do adolescente e no direito a convivência familiar e comunitária”.

Já o Ministério da Cidadania informou que “implementou atendimento especial para crianças inscritas no Cadastro Único que perderam ao menos um de seus responsáveis familiares, durante o período da pandemia da Covid-19, por meio do Programa Criança Feliz”.

Esse programa atende a famílias em que há crianças de 0 a 6 anos. Não há transferência de renda no Criança Feliz. Trata-se de um programa de visitação domiciliar. De acordo com a nota enviada à DW Brasil, o intuito desta medida é “que os profissionais do Criança Feliz incluam temas como perda e luto nas atividades, atualmente focadas no pleno desenvolvimento cognitivo, afetivo e motor das crianças”. Em 2021, foram visitadas 1,2 milhão de famílias no país.

Fonte: Deutsche Welle

 

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