Brasil

Combate à fome não está na agenda do governo Bolsonaro, diz ex-presidenta do Consea

O agronegócio ao qual Bolsonaro se aliou se gaba da produção recorde de grãos, mas não produz comida para matar a fome da população - Foto: Montagem sobre foto Gov.BR e reprodução redes sociais

Maria Emília Pacheco mostra como o governo de Jair Bolsonaro tem compromisso com a indústria que, em nome do lucro, impõe um padrão cada vez mais artificial, cujo sistema produtivo destrói a soberania alimentar e a biodiversidade.

por Cida de Oliveira

O Brasil tem pelo menos 19 milhões de pessoas vivendo em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, quando não consegue fazer suas refeições por falta de acesso aos alimentos. E mais de 100 milhões de brasileiros são vítimas de algum tipo de insegurança alimentar. A situação vem se agravando a ponto de diversas famílias buscarem restos de comida em caminhões de lixo. Ossos com pequenas sobras de carne, usadas para fazer sopa, são aguardados por grupos que formam longas filas.

Os piores índices estão nas regiões Norte e Nordeste, principalmente entre povos indígenas na região Amazônica. A flexibilização da legislação ambiental promovida pelo governo de Jair Bolsonaro estimula o aumento do desmatamento, das queimadas e das invasões de territórios tradicionais. Povos da maior floresta do mundo ficam sem onde buscar seus alimentos. Crianças yanomamis padecem de desnutrição, expondo os ossos de seus pequenos corpos.

Mesmo assim, o presidente Jair Bolsonaro não se compadece. Desde que tomou posse, em janeiro de 2019, segue fiel em sua aliança com o agronegócio e suas políticas são orientadas no sentido de desmanche das instituições e programas voltados à produção e distribuição de alimentos. Logo no seu primeiro dia como presidente, 1º de janeiro, assinou a Medida Provisória 870, que entre outras coisas extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Houve muita mobilização pela permanência do órgão colegiado de assessoramento imediato à Presidência criado em 2003. Uma medida que revogava a extinção, porém, foi vetada por Bolsonaro.

Alimentos básicos e fome

O presidente se manteve firme também na perseguição aos agricultores familiares, que produzem a maior parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, especialmente frutas, verduras. Além de excluir esses trabalhadores do benefício do Auxílio Emergencial, vetou leis voltadas a beneficiar esses trabalhadores. Em setembro, vetou integralmente o Projeto de Lei (PL) 823, de 2021, a Lei Assis Carvalho II, que instituiria medidas emergenciais de amparo a agricultores atingidos economicamente pela pandemia da covid-19.

O PL também permitiria a renegociação de dívidas de agricultores familiares afetados pela pandemia e abriria linhas de crédito para investimento em produção de alimentos básicos e leite. Pelo projeto aprovado no mês passado, por ampla maioria no Congresso Nacional, a União teria de pagar auxílio de R$ 2,5 mil por família para produtores em situação de pobreza e extrema pobreza. Entretanto, como justificativa ao veto, Bolsonaro afirmou que o projeto não indica de onde viriam os recursos para atender às necessidades do setor.

“O governo acabou com o Consea, foi enfraquecendo a Conab e não temos política de abastecimento. Ao mesmo tempo, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) vai sendo modificado e o de Aquisição de Alimentos (PAA) foi extinto com a aprovação da Medida Provisória 1061/21, que extinguiu também o Bolsa Família”, disse à RBA a ex-presidente do Consea, Maria Emília Pacheco.

Segurança alimentar

Assessora da organização Fase – Solidariedade e Educação e integrante de núcleos executivos da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Maria Emília faz um paralelo. De um lado, o histórico de desmonte das políticas criadas nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, que chegaram a tirar o Brasil do Mapa da Fome.

E de outro, a aliança mantida com o agronegócio desde os governos de Michel Temer, e fortalecida por Bolsonaro. Enquanto a população passa fome, o setor recebe benefícios tributários dos governos para derrubar florestas, colocar pastos na Amazônia e ampliar a produção e exportação da soja, milho e algodão, entre outras commodities. Ou seja, aquilo que estiver dando mais lucro.

Para analisar toda essa contradição, a Fase lançou recentemente o Dossiê Sistemas Alimentares: Fome, Corporações e Alternativas, em parceria com a Fundação Heinrich Böll. A obra está dividida em quatro temas: Fome é política: a captura corporativa dos sistemas alimentares; Políticas de abastecimento e compras públicas; Soberania Alimentar no campo-cidade; e Comer é um ato político.

O dossiê pretende que as reflexões fortaleçam a luta contra a fome e contra as investidas das corporações. Em todos os temas, os autores apontam saídas para as crises atuais, todas pautadas pelo princípios do direito humano à alimentação e nutrição adequadas, à soberania alimentar e à agroecologia, que com seu modo de produzir alimentos em harmonia com a natureza é a melhor alternativa ao modelo hegemônico de produção agrícola.

As raízes da fome no Brasil são tratadas no capítulo A fome é política, escrita pelo economista, assessor de políticas da ActionAid e membro do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Francisco Menezes.

Mapa da Fome

Para ele, o Brasil retornou ao Mapa da Fome seis anos depois, em plena pandemia da covid-19, porque não fez as transformações estruturais necessárias para sustentar o avanço na segurança alimentar. “Faltou a democratização do acesso à terra e a garantia dos direitos territoriais e, vale assinalar, mesmo no período correspondente ao que o país saiu do Mapa da Fome, mantiveram-se situações de fome entre indígenas, quilombolas e povos tradicionais”, diz, em um trecho do capítulo.

“A fome não é uma fatalidade. Não são causas naturais que geram a fome. A fome é determinada pelas profundas desigualdades sociais que acompanham nossa história. Não será o mercado, as corporações e suas propostas tecnológicas para os sistemas alimentares que vencerão a fome”

“Faltou também uma política nacional de abastecimento, cuja ausência provoca reflexo direto no preço dos alimentos atingindo desproporcionalmente a população mais pobre. Intervir sobre esses dois fatores significará sempre defrontar-se com forças poderosas que controlam o sistema alimentar brasileiro, que terá que ser resolvido no campo da política”, prossegue.

Agronegócio e mineração

Menezes lembra que após o golpe de 2016, intensificou-se um conjunto de medidas de um projeto ultra liberal, com o objetivo simultâneo de maior fortalecimento do agronegócio e da mineração. Cresce a pobreza e, mais ainda, a extrema pobreza como consequência de uma política de enfrentamento da crise econômica calcada na chamada “austeridade”, que cobrou preço alto para os mais vulneráveis, ao mesmo tempo em que os mais ricos tiveram suas riquezas ainda mais aumentadas.

Vieram o desemprego, as variantes do subemprego, o desalento, a perda de renda de milhões de famílias , alterações na legislação trabalhista, precarização das relações de trabalho e também a retirada e direitos previdenciários. “Produziu-se, assim, uma vasta camada da população com baixa ou nenhuma condição de acesso aos alimentos por sua incapacidade de poder de compra. Iniciou-se, também, um obsessivo desmonte de políticas públicas, incluídas as de segurança alimentar”, destaca Menezes.

Programas como o de Cisternas, de Aquisição de Alimentos e tantos outros que já haviam comprovado seu potencial de enfrentamento da pobreza e da insegurança alimentar foram esvaziados, enquanto crescia a população em condições de pobreza e extrema pobreza. Mas não se ampliou o público do Bolsa Família, nem sequer foi efetuada qualquer correção nas linhas de renda para ingresso no programa e nos valores a serem repassados.

No campo, o impacto não foi menor. O agronegócio a cada ano celebra o crescimento de seus lucros, enquanto a agricultura camponesa e familiar luta contra o seu alijamento das políticas públicas. Produz-se um rastro de destruição ambiental e violência.

Alternativas à fome

– A saída, segundo o autor, está na retomada dos valores originais do Auxílio Emergencial para R$ 600 e R$ 1.200 e incorporação daqueles que comprovam suas insuficiências de renda, fazendo uso do Cadastro Único e dos Centros de Referência de Assistência Social (CREAs) como os equipamentos mais adequados para a identificação desse público;

– Garantia de fornecimento da alimentação escolar às famílias com alunos em escolas públicas ainda fechadas, cumprindo o fornecimento mínimo de 30% pela agricultura familiar e camponesa;

– Retomada do Programa de Aquisição de Alimentos, com dotação orçamentária suficiente, priorizando as modalidades da Compra direta e Doação Simultânea e da Formação de Estoques;

– Adotar e executar proposta a ser elaborada por movimentos do campo e da floresta para enfrentamento com urgência de situações de fome de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.

Fonte: Rede Brasil Atual – RBA

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