Ministro Alexandre de Moraes reage ao vandalismo em Brasília determinando a maior operação da Polícia Federal até hoje contra os responsáveis por atos antidemocráticos. A intenção é coibir a tentativa de interferir na posse de Lula, no dia 1º
A diplomação de Luiz Inácio Lula da Silva e de Geraldo Alckmin, na última segunda-feira, representou um marco no processo eleitoral mais conturbado dos últimos 40 anos e, por isso, teve um esquema de segurança inédito. O temor de incidentes na cerimônia felizmente não se confirmou, nem impediu que o TSE encerrasse com chave de ouro o processo eleitoral. Mas não impediu que os apoiadores de Jair Bolsonaro transformassem Brasília, no mesmo dia, em um campo de guerra. A explosão de violência que eclodiu na noite da diplomação confirma que o bolsonarismo permanece como uma ameaça concreta, e serve de alerta para a transmissão da faixa presidencial, que ocorrerá no dia 1º.
Radicais inconformados com o resultado das urnas ainda se concentram em acampamentos em frente a alguns quartéis pelo País, e foi de um deles que saíram os vândalos que assustaram a capital federal a três semanas da transmissão do poder. Eles transformaram a capital federal em um palco de cenas de horror. Avenidas que são cartões-postais da cidade foram tomadas por veículos em chamas e barricadas com botijões de gás e pedras. Brasilienses sofreram ameaças ao tentar deixar a cena de caos. Prédios públicos foram danificados. Cinco ônibus e três carros foram incendiados. Um coletivo quase foi arremessado de um viaduto sobre uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Uma caminhonete dos bombeiros foi apedrejada. Uma delegacia foi depredada. E a sede da Política Federal quase foi invadida. O pretexto da arruaça foi a prisão, a pedido da PGR, de José Acácio Serere Xavante, um autointitulado cacique, já condenado por tráfico de drogas, que vinha insuflando manifestações antidemocráticas — o indígena já acusou o ministro Alexandre de Moraes de atacar a democracia e declarou, sem qualquer conexão com a realidade, que Lula “roubou votos”. “Não podemos admitir que ele suba a rampa e ocupe o cargo maior desse País”, disse o agitador em um dos estridentes discursos.
O horror que se viu em Brasília é apenas mais uma etapa no processo de radicalização que foi planejado por Bolsonaro logo que tomou posse. Desde 2019 ele estimulou manifestações tentando demonstrar fantasiosamente que teria o apoio dos militares para avançar sobre os outros Poderes. Após a pandemia, os alvos passaram a ser os governadores, prefeitos e os ministros do STF, atacados supostamente porque defendiam as medidas emergenciais na Saúde. Depois vieram as motociatas. O Sete de Setembro, nos últimos dois anos, deixou de ser uma data cívica para ser instrumentalizada em defesa da intervenção militar. Após a eleição, os extremistas passaram a solicitar aos militares impeçam a posse do presidente eleito. E uma vertente já se posicionou em frente ao Palácio do Alvorada, acompanhando discursos oblíquos do presidente e recebendo o apoio explícito da primeira-dama, que mandou abastecer com lanches os amotinados.
Nem os mais céticos creem que extremistas escolheram ao vento a data da diplomação para promover uma baderna na capital. O sinal de alerta soou ainda mais alto em razão da atitude complacente da Polícia Militar do Distrito Federal. É dessa corporação que saiu o atual ministro da Justiça, Anderson Torres (ele vai voltar a chefiá-la em janeiro). O aliado do presidente agiu de forma tardia e a reboque dos acontecimentos. Ninguém foi preso. Após as ocorrências, a Secretaria de Segurança Pública do DF nem sequer tentou esconder a conivência. A pasta divulgou que a ação se concentrou apenas na dispersão dos manifestantes “para redução dos danos e para evitar uma escalada ainda maior dos ânimos”. A calma dos policiais provocou surpresa na capital, posto que, no passado, até mesmo manifestações pacíficas de professores por reajustes salariais eram reprimidas com balas de borracha e prisões.
O ministro Alexandre de Moraes reagiu com energia aos últimos ataques. Incorporou as investigações sobre os acontecimentos no inquérito das milícias digitais e deu 48 horas para que o ministro da Justiça e o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, detalhassem todas as medidas adotadas contra o vandalismo. Na quinta-feira, determinou que a PF realizasse mais de 100 buscas em 8 estados e no Distrito Federal. Foi a maior operação já realizada no País contra os atos antidemocráticos. Também ordenou a quebra de sigilo bancário de investigados e o bloqueio de contas de dezenas de empresários.
Diante da inação do governo federal, coube ao futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, centralizar as informações e articular uma reação. Ou seja, o governo eleito precisou antecipar na prática sua gestão diante de uma administração inoperante – ou cúmplice. Lula, por outro lado, assistiu atônito o desenrolar das cenas no Hotel Meliá, onde estava hospedado. A tensão fez a PM cercar o edifício para protegê-lo de uma eventual invasão. O presidente eleito acompanhou o caso pela tevê e era atualizado por Andrei Passos, delegado da Polícia Federal responsável pela sua segurança na transição e escolhido para a chefia da corporação no próximo governo. O petista não se estendeu em análises naquela noite e se recolheu às 22 horas. Um dia depois, porém, jogou, com razão, a crise no colo de Bolsonaro. “Ele segue o rito que todos os fascistas seguem no mundo. É importante a gente saber que eles fazem parte de uma organização de extrema direita que não existe só no Brasil”, disparou, no Centro Cultural Banco do Brasil, no final da tarde de terça-feira. “Esse cidadão, até agora, não reconheceu a sua derrota, continua incentivando os ativistas fascistas que estão na rua se movimentando”, emendou.
Omissão
Lula não mencionou a omissão das autoridades, mas seus aliados falaram. O advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do grupo Prerrogativas e cotado para a Secretaria-Geral da Presidência, entende que o governo local “agiu mal, de forma tardia, acanhada e insuficiente”. “Na Segurança Pública, você tem que estabelecer a política do exemplo. Se há uma manifestação que coloca em xeque e em risco a segurança e a ordem pública, ela tem de ser duramente repreendida para que não seja reproduzida adiante. Sem qualquer tipo de contenção ou punição, é quase como se o Estado sinalizasse ser tolerante com esse tipo de situação”, dispara. “A posse sempre foi motivo de preocupação, porque há um mandatário no País que estimula a violência. Seria leviano dizer que não cresceu o receio”.
O atual presidente, que não tem falado para evitar piorar ainda mais sua situação com Justiça, apoia veladamente essas manifestações. E não são necessárias provas contundentes. Ele sinalizou isso ao receber no Palácio do Alvorada o blogueiro Oswaldo Eustáquio, investigado nos inquéritos das milícias digitais e das fake news, o qual, segundo o próprio advogado, teria buscado refugiar-se na residência oficial da Presidência porque temia ser preso. Três dias antes do vandalismo generalizado na capital federal, aliás, Bolsonaro havia quebrado o silêncio com um recado enigmático à militância a fim de mantê-la mobilizada. Repetiu ser “fácil impor uma ditadura no Brasil” e disse que “estamos vivendo um momento crucial, uma encruzilhada, um destino que o povo tem que tomar”. Depois disso, mesmo aconselhado por aliados a condenar as depredações e orientar radicais a não repetirem a balbúrdia, deu de ombros. Sinalizou que, caso se manifeste, atestará que os protagonistas do caos eram “infiltrados”. Trata-se de uma impostura típica de Bolsonaro, que sempre difundiu mentiras e teorias da conspiração e age em linha com movimentos extremistas que buscam criar o caos. Faz parte desse arsenal a técnica de apontar “infiltrados” de esquerda.
“Infiltrados”
Foi o que fez Ciro Nogueira, homem forte do governo. O ministro da Casa Civil foi às redes disseminar essa versão furada. “Eles têm cara de Black Blocs, que não existiram durante todo o governo Bolsonaro. Será coincidência ou a volta deles?”, publicou. O clã presidencial reforçou a desfaçatez. “A esquerda, junto com a imprensa, quer dizer que bolsonaristas saíram dos quartéis e foram tocar fogo nas ruas. Mas quem tem experiência em tocar fogo nas ruas e bloquear as estradas é a esquerda”, emendou Eduardo Bolsonaro, o 03, esquecendo-se dos caminhoneiros que fecharam avenidas após as eleições, num ato pró- golpe.
A advogada Helena Regina Lobo da Costa diz que os extremistas cometeram uma série de crimes previstos no Código Penal e afirma que “não existe motivo para que as prisões não tenham ocorrido em situação de flagrância”. “No mínimo, no incêndio e depredação de carros, vimos o crime de dano, configurado quando o cidadão destrói ou danifica bens de outro de forma intencional. Há ainda o crime de incêndio, porque, quando se coloca fogo em alguma coisa, ele pode causar perigo à integridade física, à vida e ao patrimônio de outras pessoas. Especificamente com relação aos ônibus que foram queimados, se havia passageiros e motoristas e ocorreu ordem, de forma violenta ou usando ameaça, para que deixassem o automóvel, temos crime de constrangimento ilegal, e crimes contra patrimônio público”, detalha a professora de Direito Penal da USP. “É o momento de esclarecer, com evidências, o que une todos os que estavam lá, se os crimes foram cometidos em uma tentativa de impedir a posse do presidente eleito, o que eles planejam para o futuro, como são financiados”, emenda.
Enquanto a investigação anda, políticos buscam alternativas para desmobilizar os bolsonaristas em Brasília e evitar a repetição do caos. O deputado distrital Fábio Félix, do PSOL, considera imprescindível o desmonte do acampamento de manifestantes que pedem uma intervenção militar em frente ao Quartel-General do Exército. A própria Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal já reconheceu que parte dos homens que depredaram prédios públicos e incendiaram automóveis dormem e acordam na ocupação do setor militar, conforme indicam filmagens de segurança e de trânsito. “É uma tragédia anunciada”, declara. “Sabemos que houve uma desidratação do número de pessoas no local desde o início do movimento, mas as últimas investidas demonstram que quem permaneceu são os mais extremistas, os mais radicalizados. Trata-se de um grupo altamente financiado, sempre com apoio de caminhões, alimentos e utensílios”, pontua.
A dúvida agora é se a baderna pode se reproduzir no dia 1º, transformando-se de fato na versão tupiniquim da invasão do Capitólio americano, em 6 de janeiro de 2020, quando extremistas estimulados por Donald Trump invadiram o prédio do Congresso americano e provocaram cinco mortes. Apesar da inquietação, o planejamento para a posse em Brasília não mudou. Ele inclui a proteção de prédios-chave, como o STF, e de Lula. Na Corte, diz-se que, desde o princípio, houve a previsão de um esquema de segurança máxima para a cerimônia, o que envolve a convocação do efetivo completo de agentes da Polícia Judicial e o reforço dos quadros a partir da cessão de profissionais por tribunais superiores ao Supremo, o posicionamento de viaturas e oficiais da tropa de Choque da Polícia Militar em frente à sede, o uso de barreira antidrone, com sensores que detectam o equipamento, e a ampliação do número de seguranças ao lado de ministros.
Posse
Seguem na mesma linha aliados de Lula envolvidos na organização da posse. Eles apontam que o evento contará com snipers, um efetivo de policiais robusto e seguranças de lideranças mundiais. “Em nenhum momento Lula teve sua integridade física ameaçada. Temos que valorizar isso”, afirmou Flávio Dino. “Vamos fazer a maior posse presidencial do Brasil em 1º de janeiro de 2023, com música, cultura e arte. Não há o que temer.”
Na contramão do discurso, porém, brasilienses que cogitaram ir à posse já reveem os planos. É o caso da auxiliar administrativa Nathália Sousa, de 24 anos, que presenciou a barbárie de segunda-feira ao sair do trabalho, na Asa Norte, para voltar para casa. “Eu nunca tinha visto uma posse de forma presencial e, como eleitora do Lula, estava pensando em ir com meu filho de 5 anos. Mas agora a gente fica com receio. Nas eleições, vimos que não se podia sair de vermelho pelo risco de agressão. Agora, isso”, lamenta. Não há maior prova da corrosão da democracia.
EXTREMISTAS AGRIDEM EM SÃO PAULO
Bolsonaristas acampados em frente ao QG do Comando Militar do Sudeste atacam jornalistas no exercício da função
Não é apenas em Brasília que os apoiadores do presidente agem com selvageria. Em São Paulo, a repórter Gabriela Rölke e um repórter fotográfico da ISTOÉ foram cercados e agredidos na quarta-feira, 14, no acampamento em frente ao QG do Comando Militar do Sudeste. Receberam “ordens” para deixar o local, uma via pública, aos gritos e xingamentos. Um homem empurrou com o antebraço as costas do fotógrafo, enquanto outro tentava arrancar a câmera de suas mãos. Os jornalistas procuraram a base da PM a poucos metros, seguidos pelos manifestantes.
Seguiram as intimidações, com violência crescente, até o arremesso de urina armazenada em galões pelos bolsonaristas, que também arrancaram o bloco de anotações da jornalista. Foi registrado BO na Polícia Civil, sob a qualificação de “injúria, vias de fato e constrangimento ilegal”. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) repudiou o ataque, com a presidente Katia Brembatti destacando que aumenta o número de casos como esse. “Cobramos providências. A impunidade alimenta a violência”, disse Brematti.
Por ANA VIRIATO, MARCOS STRECKER
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