O plenário do Supremo Tribunal Federal decide, na tarde desta quarta-feira (05/07), se mantém ou não decisão liminar (provisória) do ministro Luís Roberto Barroso que obrigou o governo federal a tomar medidas para proteger comunidades indígenas durante a pandemia do novo coronavírus.
Na decisão do começo de julho, Barroso obrigou a União a manter barreiras sanitárias para impedir que a doença se espalhe em 31 terras indígenas.
O ministro também determinou a criação de uma “sala de situação” com representantes das comunidades indígenas, do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União, para acompanhar e discutir medidas relacionadas ao combate à pandemia entre os povos originários.
Nesta quarta, os ministros do STF poderão decidir ainda sobre um outro pedido dos indígenas: o de que o governo federal realize a retirada de dezenas de milhares de não-índios que invadiram terras demarcadas, como garimpeiros, posseiros e outros.
Em sua decisão liminar, Barroso disse que a retirada dos invasores é “medida imperativa e imprescindível”, mas que não poderia ser feita com uma canetada.
“A remoção de dezenas de milhares de pessoas deve considerar: a) o risco de conflitos; e b) a necessidade de ingresso nas terras indígenas de forças policiais e militares, agravando o perigo de contaminação”, escreveu o ministro.
Este ponto é agora contestado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que ingressou com a ação.
Além da Apib, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 é assinada por seis partidos políticos de esquerda (PC do B, PDT, PSB, PSOL, PT e Rede).
O julgamento da ADPF foi iniciado na última segunda-feira (03), quando o Supremo Tribunal Federal retomou as atividades após o recesso do Judiciário.
Na ocasião, não houve votos de ministros: só se manifestaram as partes e o relator do caso, Luís Roberto Barroso. O ministro votou pela manutenção da liminar, posição que também foi adotada pelo Ministério Público Federal.
Já o advogado-geral da União, José Levi, representando o governo, pediu ao STF que reconhecesse as ações já desenvolvidas pelo Executivo para garantir a saúde das comunidades indígenas.
Comunidades indígenas foram fortemente atingidas pela covid-19. Segundo a Apib, a pandemia já vitimou 623 indígenas, e 21.646 foram contaminados. A doença chegou a 146 povos, nos Estados do Amazonas, Pará, Mato Grosso, Roraima e Maranhão.
Na petição inicial, a Apib afirma ainda que o novo coronavírus parece ser mais letal para os indígenas do que para a população brasileira em geral. Até agora, a letalidade do vírus entre os povos indígenas é de 9,6%, ante 5,6% para a população brasileira em geral, segundo a entidade.
Entidade recorre para remover invasores
Na terça-feira, a Apib recorreu contra o trecho da decisão de Barroso em que ele rejeitou o pedido de expulsar os invasores das terras indígenas. Em sua decisão, Barroso disse apenas que a União deveria elaborar um plano para a expulsão dos invasores, mas sem determinar um prazo para que a ação fosse tomada.
No recurso, a entidade diz que “a elaboração de plano para a desintrusão é medida absolutamente insuficiente, incompatível com a gravidade do quadro descrito pela própria decisão (de Barroso)”.
Na petição, a Apib pede que a União aja para remover os invasores de sete terras indígenas: Yanomami, Karipuma, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Mundukuru e Trincheira Bacajá.
“Os riscos à saúde dos povos indígenas decorrentes da presença e das atividades criminosas dos invasores são incomparavelmente superiores aos de uma operação para a retirada dessas pessoas. E esses riscos sanitários eventualmente provocados por operações de extrusão podem ser minimizados, com a adoção de cautelas fundamentais, tais como a testagem prévia e quarentena obrigatória dos agentes estatais envolvidos nessas operações”, escreveu a Apib.
Se não for possível remover os invasores imediatamente, pede a Apib, o STF deveria ao menos fixar prazos para que a União apresente — e cumpra — o plano de desintrusão dos invasores nestas terras indígenas.
“Temos que esperar o julgamento, mas a nossa impressão é essa (de que a liminar de Barroso será mantida). O que estamos tentando é avançar na questão da desintrusão, que o ministro Barroso não concedeu”, diz à BBC News Brasil o assessor jurídico da Apib, Luiz Eloy Terena.
“A gente espera que amanhã (nesta quarta, 05/08) os outros ministros possam trazer um voto indo um pouco além do que Barroso já foi. A decisão dele é boa, mas no que toca à desintrusão, a gente entende que poderia ir além”, disse.
“Mesmo com o ministro dizendo que não é o caso do Tribunal determinar à União que faça isso, entendemos que o STF pode dar pelo menos um prazo para que seja cumprida (a desintrusão)”, diz Eloy. “Deixar sem um prazo fixo (para o cumprimento) é o mesmo que não ter uma garantia de execução”, pontua ele.
No começo da semana, o fotógrafo Sebastião Salgado se juntou à demanda pela expulsão dos invasores das terras indígenas. Salgado gravou um vídeo de pouco mais de dois minutos, com um apelo aos ministros do STF.
“É com humildade e com humanidade que eu venho a vocês solicitar o apoio às comunidades indígenas. Não é só necessário, hoje, socorrer as comunidades criando esse cordão sanitário de proteção, como é necessário também a expulsão dos invasores. Essas invasões são, como vocês sabem melhor que eu, completamente ilegais (…). Vocês são o último recurso, a última possibilidade de que a justiça realmente se faça no Brasil”, diz Salgado.
Ação judicial pode representar marco histórico
O fato de a Apib ter ido diretamente ao Supremo tem implicações que vão além apenas da ação em questão, segundo o professor de direito Daniel Sarmento, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que também assina o documento.
A decisão de Barroso de reconhecer a legitimidade dos indígenas para apresentar a ação pode gerar jurisprudência para que outras entidades, como representantes de mulheres, defensores de direitos LGBT e etc também possam ir à Corte com ações semelhantes, caso seja referendada pelo plenário do STF.
Isso porque a Constituição de 1988 estabelece uma série de instituições que podem entrar com uma ação do tipo no STF, entre as “entidades de classe”. A jurisprudência do Supremo costumava entender entidades de classe como entidades profissionais, como sindicatos, por exemplo.
Em sua decisão, Barroso diz que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) “possui legitimidade ativa para propor ação direta perante o STF”, ou seja, reconhece que a entidade também é uma entidades de classe, mesmo que não represente um grupo econômico, mas sim setores da população brasileira.
Entre as entidades que tinham o direito já garantido de entrar com ações do tipo estão os partidos políticos com representação no Congresso. Por garantia, seis partidos políticos foram convidados a participar do processo pela Apib e aceitaram — PSB, PSOL, PCdoB, Rede, PT, PDT assinam a ação em conjunto com a entidade.
“É uma garantia mas serve também para mostrar que os indígenas são apoiados pelas forças políticas, todos os partidos de oposição convidados aceitaram participar”, afirma Sarmento.
Em sua resposta, a AGU não contestava a legitimidade da Apib, mas alegava que há outras formas de garantir direitos sem ser uma ação no STF. Barroso, no entanto, decidiu que o pedido é legítimo e que há necessidade de diálogo entre o Judiciário e o Executivo “em matéria de políticas públicas decorrentes da Constituição”.
O que querem os indígenas?
Na ação, a Apib pede ao STF seis providências pelo poder público para frear o avanço da pandemia nas populações indígenas.
Uma das principais é a determinação da criação de barreiras sanitárias “para proteção das terras indígenas em que estão localizados povos indígenas isolados e de recente contato.”
O documento da Apib cita 21 terras de povos isolados em diversos Estados e 20 terras de povos de recente contato para os quais a entrada de pessoas de fora pode ser catastrófica.
Barroso determinou um prazo de 10 dias para que a União apresente um plano para evitar a entrada de terceiros em territórios desses povos.
Outros pedidos deferidos pelo Supremo foram o de que se crie uma sala de situação para coordenar a resposta à pandemia com a participação de representantes indígenas e da sociedade, como a Defensoria Pública; e o pedido de que a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) atenda também indígenas que vivem em áreas não demarcadas e nas cidades.
Em resposta à afirmação da entidade de que o plano atual do governo é vago e ineficaz, a Justiça determinou que poder público formule e coloque em prática um “Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros”, com participação de indígenas e representantes da sociedade civil. O governo tem 30 dias para apresentar um plano, que deve seguir uma série determinações do STF, como ter o apoio técnico da Fiocruz.
André Shalders – @andreshalders
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