Brasil

O que está em jogo no julgamento do STF sobre povos indígenas na pandemia

Homem do povo yanomami é atendido em Alto Alegre, Roraima; plenário do STF deve se debruçar sobre pauta acerca do papel do governo federal na proteção das terras indígenas na pandemia de coronavírus. Foto:REUTERS/ADRIANO MACHADO

O plenário do Supremo Tribunal Federal decide, na tarde desta quarta-feira (05/07), se mantém ou não decisão liminar (provisória) do ministro Luís Roberto Barroso que obrigou o governo federal a tomar medidas para proteger comunidades indígenas durante a pandemia do novo coronavírus.

Na decisão do começo de julho, Barroso obrigou a União a manter barreiras sanitárias para impedir que a doença se espalhe em 31 terras indígenas.

O ministro também determinou a criação de uma “sala de situação” com representantes das comunidades indígenas, do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União, para acompanhar e discutir medidas relacionadas ao combate à pandemia entre os povos originários.

Nesta quarta, os ministros do STF poderão decidir ainda sobre um outro pedido dos indígenas: o de que o governo federal realize a retirada de dezenas de milhares de não-índios que invadiram terras demarcadas, como garimpeiros, posseiros e outros.

Em sua decisão liminar, Barroso disse que a retirada dos invasores é “medida imperativa e imprescindível”, mas que não poderia ser feita com uma canetada.

“A remoção de dezenas de milhares de pessoas deve considerar: a) o risco de conflitos; e b) a necessidade de ingresso nas terras indígenas de forças policiais e militares, agravando o perigo de contaminação”, escreveu o ministro.

Este ponto é agora contestado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que ingressou com a ação.

Além da Apib, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 é assinada por seis partidos políticos de esquerda (PC do B, PDT, PSB, PSOL, PT e Rede).

O julgamento da ADPF foi iniciado na última segunda-feira (03), quando o Supremo Tribunal Federal retomou as atividades após o recesso do Judiciário.

Na ocasião, não houve votos de ministros: só se manifestaram as partes e o relator do caso, Luís Roberto Barroso. O ministro votou pela manutenção da liminar, posição que também foi adotada pelo Ministério Público Federal.

O ministro Luís Roberto Barroso fala no plenário do STF, sentado e gesticulando
Em liminar de julho, Barroso obrigou a União a manter barreiras sanitárias para impedir que a covid-19 se espalhe nas terras indígenas. Foto:NELSON JR./SCO/STF
 

Já o advogado-geral da União, José Levi, representando o governo, pediu ao STF que reconhecesse as ações já desenvolvidas pelo Executivo para garantir a saúde das comunidades indígenas.

Comunidades indígenas foram fortemente atingidas pela covid-19. Segundo a Apib, a pandemia já vitimou 623 indígenas, e 21.646 foram contaminados. A doença chegou a 146 povos, nos Estados do Amazonas, Pará, Mato Grosso, Roraima e Maranhão.

Na petição inicial, a Apib afirma ainda que o novo coronavírus parece ser mais letal para os indígenas do que para a população brasileira em geral. Até agora, a letalidade do vírus entre os povos indígenas é de 9,6%, ante 5,6% para a população brasileira em geral, segundo a entidade.

Entidade recorre para remover invasores

Na terça-feira, a Apib recorreu contra o trecho da decisão de Barroso em que ele rejeitou o pedido de expulsar os invasores das terras indígenas. Em sua decisão, Barroso disse apenas que a União deveria elaborar um plano para a expulsão dos invasores, mas sem determinar um prazo para que a ação fosse tomada.

No recurso, a entidade diz que “a elaboração de plano para a desintrusão é medida absolutamente insuficiente, incompatível com a gravidade do quadro descrito pela própria decisão (de Barroso)”.

Na petição, a Apib pede que a União aja para remover os invasores de sete terras indígenas: Yanomami, Karipuma, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Mundukuru e Trincheira Bacajá.

“Os riscos à saúde dos povos indígenas decorrentes da presença e das atividades criminosas dos invasores são incomparavelmente superiores aos de uma operação para a retirada dessas pessoas. E esses riscos sanitários eventualmente provocados por operações de extrusão podem ser minimizados, com a adoção de cautelas fundamentais, tais como a testagem prévia e quarentena obrigatória dos agentes estatais envolvidos nessas operações”, escreveu a Apib.

Se não for possível remover os invasores imediatamente, pede a Apib, o STF deveria ao menos fixar prazos para que a União apresente — e cumpra — o plano de desintrusão dos invasores nestas terras indígenas.

“Temos que esperar o julgamento, mas a nossa impressão é essa (de que a liminar de Barroso será mantida). O que estamos tentando é avançar na questão da desintrusão, que o ministro Barroso não concedeu”, diz à BBC News Brasil o assessor jurídico da Apib, Luiz Eloy Terena.

“A gente espera que amanhã (nesta quarta, 05/08) os outros ministros possam trazer um voto indo um pouco além do que Barroso já foi. A decisão dele é boa, mas no que toca à desintrusão, a gente entende que poderia ir além”, disse.

“Mesmo com o ministro dizendo que não é o caso do Tribunal determinar à União que faça isso, entendemos que o STF pode dar pelo menos um prazo para que seja cumprida (a desintrusão)”, diz Eloy. “Deixar sem um prazo fixo (para o cumprimento) é o mesmo que não ter uma garantia de execução”, pontua ele.

No começo da semana, o fotógrafo Sebastião Salgado se juntou à demanda pela expulsão dos invasores das terras indígenas. Salgado gravou um vídeo de pouco mais de dois minutos, com um apelo aos ministros do STF.

“É com humildade e com humanidade que eu venho a vocês solicitar o apoio às comunidades indígenas. Não é só necessário, hoje, socorrer as comunidades criando esse cordão sanitário de proteção, como é necessário também a expulsão dos invasores. Essas invasões são, como vocês sabem melhor que eu, completamente ilegais (…). Vocês são o último recurso, a última possibilidade de que a justiça realmente se faça no Brasil”, diz Salgado.

Ação judicial pode representar marco histórico

Índio do povo Guarani Kaiowa aparece de perfil em frente ao prédio do STF em Brasília
Índio do povo guarani kaiowa em frente ao prédio do STF, em foto de arquivo. Foto: REUTERS/ADRIANO MACHADO

O fato de a Apib ter ido diretamente ao Supremo tem implicações que vão além apenas da ação em questão, segundo o professor de direito Daniel Sarmento, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que também assina o documento.

A decisão de Barroso de reconhecer a legitimidade dos indígenas para apresentar a ação pode gerar jurisprudência para que outras entidades, como representantes de mulheres, defensores de direitos LGBT e etc também possam ir à Corte com ações semelhantes, caso seja referendada pelo plenário do STF.

Isso porque a Constituição de 1988 estabelece uma série de instituições que podem entrar com uma ação do tipo no STF, entre as “entidades de classe”. A jurisprudência do Supremo costumava entender entidades de classe como entidades profissionais, como sindicatos, por exemplo.

Em sua decisão, Barroso diz que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) “possui legitimidade ativa para propor ação direta perante o STF”, ou seja, reconhece que a entidade também é uma entidades de classe, mesmo que não represente um grupo econômico, mas sim setores da população brasileira.

Entre as entidades que tinham o direito já garantido de entrar com ações do tipo estão os partidos políticos com representação no Congresso. Por garantia, seis partidos políticos foram convidados a participar do processo pela Apib e aceitaram — PSB, PSOL, PCdoB, Rede, PT, PDT assinam a ação em conjunto com a entidade.

“É uma garantia mas serve também para mostrar que os indígenas são apoiados pelas forças políticas, todos os partidos de oposição convidados aceitaram participar”, afirma Sarmento.

Em sua resposta, a AGU não contestava a legitimidade da Apib, mas alegava que há outras formas de garantir direitos sem ser uma ação no STF. Barroso, no entanto, decidiu que o pedido é legítimo e que há necessidade de diálogo entre o Judiciário e o Executivo “em matéria de políticas públicas decorrentes da Constituição”.

O que querem os indígenas?

Indígena com bebê no colo, rodeado por vários outros espalhados em campo
Membros do povo yanomami ao redor de posto de atendimento em Roraima. Foto: EPA/JOEDSON ALVES

Na ação, a Apib pede ao STF seis providências pelo poder público para frear o avanço da pandemia nas populações indígenas.

Uma das principais é a determinação da criação de barreiras sanitárias “para proteção das terras indígenas em que estão localizados povos indígenas isolados e de recente contato.”

O documento da Apib cita 21 terras de povos isolados em diversos Estados e 20 terras de povos de recente contato para os quais a entrada de pessoas de fora pode ser catastrófica.

Barroso determinou um prazo de 10 dias para que a União apresente um plano para evitar a entrada de terceiros em territórios desses povos.

Outros pedidos deferidos pelo Supremo foram o de que se crie uma sala de situação para coordenar a resposta à pandemia com a participação de representantes indígenas e da sociedade, como a Defensoria Pública; e o pedido de que a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) atenda também indígenas que vivem em áreas não demarcadas e nas cidades.

Em resposta à afirmação da entidade de que o plano atual do governo é vago e ineficaz, a Justiça determinou que poder público formule e coloque em prática um “Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros”, com participação de indígenas e representantes da sociedade civil. O governo tem 30 dias para apresentar um plano, que deve seguir uma série determinações do STF, como ter o apoio técnico da Fiocruz.

 

André Shalders – @andreshalders

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