Política

‘Sou chamada de delinquente e débil mental no Congresso’, diz deputada que confrontou ministro da Educação

Tabata Amaral: aos 25 anos, deputada tem se destacado por suas pautas voltadas à educação (Luis Macedo/Agência Câmara)

“Parece que não há sequer um ministério”, diz Tabata Amaral (PDT-SP), que em outubro se tornou a sexta deputada federal mais votada em São Paulo, com 264.450 votos.

A visibilidade nacional, no entanto, chegou só na semana passada, quando Amaral protagonizou um debate duro com o ministro da Educação, Ricardo Vélez. “Em um trimestre não é possível que o senhor apresente um Power Point com dois, três desejos para cada área da educação. Cadê os projetos? Cadê as metas? Quem são os responsáveis?”, diz a parlamentar estreante de 25 anos em um vídeo compartilhado milhares de vezes.

Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil na Universidade de Harvard, onde participa de roda de palestras, Amaral falou sobre a rotina no Congresso, que classifica como “um ambiente que tenta te expulsar rapidamente”. E conta que sofre recorrentemente assédio e preconceito.

“Já perdi a conta do número de vezes em que alguém insinuou que eu era burra ou não tinha nenhum conhecimento”, diz. “Sou chamada de burra, delinquente, débil mental e outras coisas que já me chamaram em plenário.”

“As pessoas chegam e perguntam se sou casada no meio de uma votação, vêm me tocar de uma maneira que não é adequada para uma parlamentar. É um ambiente muito arisco para as mulheres.”

“A gente não vai aceitar qualquer tipo de ministro”, diz.

“O maior exemplo que eu dou: o ministro da economia, se não tivesse a menor experiência de gestão ou com economia, não teria sobrevivido uma semana no cargo. Por que a gente demora tanto para se incomodar com o ministro da Educação?”

Criada na Vila Missionária, bairro pobre paulistano, e novata no Congresso, Amaral já trabalhou como pesquisadora, professora, funcionária de secretarias de educação e estudou na universidade de Harvard, graças a bolsas de estudos. Filha de um cobrador de ônibus e de uma diarista, ela ganhou pelo menos 30 medalhas em concursos de matemática, astronomia, física e robótica.

“O nosso vestibular é muito burro, para falar português claro. Ele olha quem chegou mais longe, e não quem correu mais”, diz. “Não passei na Unicamp e no ITA, mas passei nas seis melhores faculdades dos EUA com bolsa completa. Porque no vestibular daqui (EUA) eu falei que trabalhava desde os meus 7 anos. E isso contou.”

A deputada, que se classifica como “progressista”, de “centro-esquerda” e defende cotas sociais e raciais, diz acreditar que a universidade pública é um ambiente elitista, frequentado por ricos.

“Se uma pessoa tem condições de pagar por uma faculdade, acho que ela deveria. E quem não tem condições, não tem que fazer financiamento, não tem que fazer nada, tem que ter a faculdade pública.”

Leia os principais trechos da entrevista:

Tabata Amaral e Ricardo Vélez
Direito de imagemREPRODUÇÃO/TV CÂMARAImage captionAmaral protagonizou um debate duro com o ministro da Educação, Ricardo Vélez

BBC News Brasil – Como viu a repercussão do seu debate com o ministro da Educação?

Tabata Amaral – Aquela não foi a primeira tentativa de conversar com o ministro. A praxe é que ele participe da primeira reunião da Comissão de Educação e ele não foi. Para mim, as pessoas se identificaram com o vídeo porque esta é a pasta mais importante do país, num dos países mais desiguais do mundo, e não víamos nada acontecendo, só fumaça, desmandos e polêmicas.

A repercussão do vídeo deixa um sentimento de que esse é o trabalho do parlamentar. Não é só legislar, é fiscalizar o governo também. E não deveria ser estranho que a gente pedisse como parlamentares quais são os planos e ideias.

Depois só ficou a certeza de que de fato não há um planejamento dentro do ministério. Parece que não há sequer um ministério. O MEC (Ministério da Educação) não se posiciona com os cortes de pessoas e verbas, não se posiciona quando é o ministério da Economia, que chama uma discussão sobre o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). O MEC foi como convidado a uma reunião sobre isso. Soma tudo isso com a falta de qualquer plano e para a gente dá uma revolta muito grande.

BBC News Brasil – Como avalia a reação do ministro às suas colocações?

Amaral – Não sei nem o que dizer. O ministro não tem a menor experiência com a educação pública brasileira, a menor experiência com gestão, e o que mais incomoda é que não há a menor disposição de aprender ou ouvir as pessoas que estão interessadas.

Já que o ministro não tem um plano, não sabe quantos alunos há na rede, qual é a verba, qual a diretriz para o ensino técnico, isso tem que vir da sociedade e do Congresso. Dali eu não espero que venha mais nada.

BBC News Brasil – O presidente Bolsonaro acenou uma perspectiva mais clara de substituição do ministro. Isso traz algum tipo de esperança à senhora?

Amaral – Dado o cenário de total paralisia e ausência do MEC nos principais debates, sim, eu fico pelo menos muito atenta para entender se dessa vez vem alguém com um pouco de experiência e conhecimento.

Algumas pessoas não entenderam que neste momento eu não estou muito preocupada com o posicionamento ideológico de quem vai ocupar essa pasta. Porque está tudo paralisado, corremos o risco de não ter Enem. O Brasil corre o risco de não fazer as principais avaliações. Só quero alguém que conheça a educação pública e tenha experiência em gestão. A gente só vai descobrir na segunda-feira. Mas há espaço para o Parlamento e para a população dizer: ‘A gente não vai aceitar qualquer tipo de ministro’

O maior exemplo que eu dou: o ministro da economia, se não tivesse a menor experiência de gestão ou com economia, não teria sobrevivido uma semana no cargo. Por que a gente demora tanto para se incomodar com o ministro da Educação?

BBC News Brasil – A senhora destacou com ênfase que ele tinha uma mera carta de intenções, mas não um projeto concreto. Que projeto a senhora propõe?

Amaral – O MEC tem que apresentar sua visão para o Fundeb. Ele vence no próximo ano e não é possível que o principal motor da educação pública não receba a menor atenção do ministério. Que modelo eles estão propondo? Apoiam que o Fundeb vá para a Constituição? Como fazer que ele seja mais redistributivo? Como olhar para as práticas de gestão e resultados? O ministério não pode se ausentar dessa discussão, temos basicamente um ano para fazer isso. Quando vai apresentar?

Outra coisa paralisada é a questão da formação dos professores. A gente tinha começado a avançar nessa discussão e não tem mais nada. O Brasil é um dos poucos países que se dizem comprometidos com a educação pública e não tem uma política nacional de formação. O que a gente espera de um professor depois de quatro anos? Que queremos avaliar depois da formação? Qualquer tipo de formação vale? Educação a distância faz sentido para todos os anos?

Além das políticas que já estavam em andamento e estão paralisadas. Implementação da base comum curricular, municípios precisam de apoio nessa área, implementação da reforma do ensino médio, uma política de ensino técnico. Tudo isso não são coisas muito muito complexas, já estavam encaminhadas no MEC e foram engavetadas e foram deixadas de lado hoje.

BBC News Brasil – A senhora é uma estreante no Congresso, como quase metade dos congressistas hoje em dia. Como é aquele ambiente? O que pode contar para quem nunca pisou no Salão Verde?

Amaral – Trabalho com educação há quase 10 anos. Já trabalhei como pesquisadora, professora, em secretarias de educação. As figuras de educação da política nacional eu conhecia. Ou porque fiz pressão sobre elas, com abaixo-assinados, protestos, etc, ou porque elas estavam abertas para o diálogo com a juventude. Para mim, essa é a porta de entrada e eu quero realmente dedicar meu mandato a essa área.

Sobre o dia a dia no Congresso, é um aprendizado rápido e muito difícil. É um lugar que não está acostumado com pessoas como eu e diariamente sou questionada sobre como fui parar ali. Eu não sou filha de político, não sou herdeira e estou muito longe de ser um fenômeno da internet. As pessoas não entendem. Elas perguntam mesmo: ‘você é filha de alguém?’, ‘você é dona de alguma empresa?’, ‘você é casada ou solteira?’, ‘você não é deputada estadual?’. Eu sei a ordem em que as perguntas chegam.

É um ambiente que tenta te expulsar rapidamente. Mas sempre que vejo as pessoas da minha comunidade, principalmente a juventude e as mulheres que olham para mim e sentem que a educação é para a gente também, você enfrenta o preconceito, o assédio, as piadas, e continua trabalhando e aprendendo.

BBC News Brasil – Assédio, preconceito e machismo são problemas reais ali dentro?

Amaral – Com certeza. Já perdi a conta do número de vezes em que alguém insinuou que eu era burra ou não tinha nenhum conhecimento. Eu estudei astrofísica, fui bolsista pelas Olimpíadas de Matemática. Eu só andava com os meninos que gostavam de ciência e sempre tive muito contato com o machismo porque as pessoas não entendiam como uma menina gostava de ciências. E toda vez tentavam dizer que eu não era tão boa por ser uma menina.

Então, quando eu entro no Congresso e sou chamada de burra, delinquente, débil mental e outras coisas que já me chamaram em plenário… É um risco muito fácil você acreditar porque está todo mundo dizendo que você não é boa o suficiente.

Tem assédio, as pessoas chegam e perguntam se sou casada no meio de uma votação, vêm me tocar de uma maneira que não é adequada para uma parlamentar. É um ambiente muito arisco para as mulheres. As pessoas não te encaixam ali e querem te expulsar e convencer que você nao deveria estar ali.

BBC News Brasil – Na repercussão do vídeo, houve setores mais radicais que desconsideram a conversa e criticaram a senhora por não ser de esquerda, por exemplo. Como viu isso?

Amaral – As pessoas tem uma necessidade muito grande de rotular os outros porque o nosso cérebro funciona assim. Eu tenho uma vida muito diferente. Conhecer a periferia e conhecer Harvard me definem mais que qualquer um dos dois extremos. Não sou mais só alguém da periferia, porque tive oportunidades que ninguém teve, mas também não sou só uma ex-aluna de Harvard, porque não fui aos mesmos museus, aos mesmos parques, e não tenho a mesma rede de contato.

As duas coisas fazem de mim quem eu sou. Da mesma forma que as pessoas no Congresso ficam perplexas e incomodadas porque não faz sentido eu estar ali, as outras pessoas também ficam muito agoniadas porque não conseguem me encaixar em caixinhas.

Eu me considero progressista, essa para mim é uma excelente apresentação. Para mim o maior problema do Brasil é a desigualdade, minha maior missão é com educação pública de qualidade para todos, mas acho que faz sentido falarmos de gestão eficiente, desenvolvimento econômico sustentável, e se as pessoas se incomodam porque isso não caracteriza alguém típico de extrema esquerda ou direita, sinto muito, eu vou continuar trabalhando.

BBC News Brasil – A senhora falou em dois lados. É errado enxergá-la no centro?

Amaral – Acho que direita e esquerda são termos muito antigos que não explicam o mundo de hoje. Foram cunhados há 200 anos, quando não se entendia o que é feminismo ou desenvolvimento sustentável.

Se tivesse que me colocar no espectro, eu me colocaria na centro-esquerda. Mas sinceramente que no futuro progressista diga mais sobre quem eu sou.

BBC News Brasil – Como foi sua trajetória até Harvard e depois ao Congresso nacional?

Amaral – Minhas oportunidades na educação começaram com olimpíadas de matemática nas escolas públicas, uma política do governo federal em 2005. Com essa oportunidade e uma professora da escola estadual que me ajudou a me preparar para a competição, eu ganhei uma bolsa de estudos para escola particular e uma para estudar inglês.

Eu trabalho desde pequena, bordava e fazia artesanato para ajudar em casa, e não pensava no que faria depois do Ensino Médio. Ninguém nunca nem tinha me posto essa possibilidade. Essa foi a grande diferença. Eu passei a estar em lugares em que as pessoas acreditavam que se podia fazer faculdade. Foi assim que vim parar em Harvard. Com uma bolsa da faculdade, quase sem falar inglês, mas com professores que acreditaram em mim. Vim em agosto de 2012 e terminei em maio de 2016.

Eu cresci na periferia. Já perdi a conta do número de amigos e vizinhos que perdi com 14 ou 15 anos para as drogas, crime, violência. Perdi meu pai com 39 anos para as drogas. Eu não saí de um lugar para o outro, passei a viver em dois mundos completamente diferentes e vivo neles ainda. Me identifico com a periferia, aprendi muito em Harvard, mas não vivo 100% em nenhum dos dois mundos. Isso que me levou para a educação e para a política.

BBC News Brasil – Como vê políticas afirmativas, cotas por cor ou situação econômica?

Amaral – É importante olhar para as evidências e a realidade das pessoas e esses dois elementos mostram que alunos de escola pública saem muito atrás na corrida. E que alunos negros da escola pública saem ainda mais atrás.

O nosso vestibular é muito burro, para falar português claro. Ele olha quem chegou mais longe, e não quem correu mais. Eu não passei na Unicamp e no ITA, mas passei nas seis melhores faculdades dos EUA com bolsa completa. Porque no vestibular daqui (EUA)eu falei que trabalhava desde os meus 7 anos. E isso contou. Eu contei a minha história.

Quando o nosso vestibular é tão ignorante e quando o ponto de partida é tão desigual, as cotas são as maneiras que temos hoje de igualar um pouco esse ponto de partida. Mas acho que temos que mudar o vestibular como um todo. Tem que olhar para a trajetória da pessoa, para a renda. Não é só uma prova. Hoje sou a favor das duas cotas porque dentro da escola pública há uma desigualdade racial.

BBC News Brasil – E sobre o fim do ensino público superior gratuito?

Amaral – Nesse momento não acho que há ambiente para se falar em cobrança dentro do ensino superior. Defendo ampliar as formas que as universidades podem se financiar. Para mim, uma faculdade pode fazer uma parceria com empresas, como vi aqui em Harvard, para construir conhecimento. Para mim, uma universidade pode receber doações, inclusive de ex-alunos.

Agora, em um futuro, acho que vale sim uma discussão nesse sentido. Se uma pessoa tem condições de pagar por uma faculdade, acho que ela deveria. E quem não tem condições, não tem que fazer financiamento, não tem que fazer nada, tem que ter a faculdade pública.

Se você vê os carrões que estão na faculdade de física da USP, vê que a faculdade pública é para a elite hoje. Ou a gente muda o vestibular para dar chances iguais para todo mundo e para de financiar apenas um grupo da sociedade, ou a gente no futuro começa a cobrar de quem pode pagar e deixa a faculdade gratuita para quem precisa. Mas esse momento não chegou ainda.

BBC News Brasil – Há alguma perspectiva de tempo para que essa discussão esteja mais madura?

Amaral – Não, não é uma coisa de tempo, mas de mudar como vemos o Ensino Superior. Ele é extremamente elitizado, quem vai para a faculdade pública é quem teve muito acesso e oportunidade. Isso tem que mudar antes de falarmos de mudança de mentalidade.

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